quinta-feira, 1 de julho de 2021

CONTOS DE SAMUEL ASTRO


O MERETÍSSIMO JUÍZ

Numa sexta-feira 06 de Junho de 1969, o Meritíssimo Doutor Juiz Pran Gupta, português de origem goesa e há uma década, pelo menos, residente luandense, proveniente de Lourenço Marques de onde saíra por comportamentos profissionais não muito ortodoxos, conseguiu alcandorar-se à ribalta local quando julgou e passou sentença num caso que, pela sua peculiaridade, o tornou afamado. Talvez hoje, para dias de notícias instantâneas nas redes sociais, falsas ou verdadeiras, poderá parecer o caso inócuo ou até o pão-nosso-de-cada-dia, logo descartado com um “e depois?” de surpresa, se não de chacota.

Luanda era então um pequeno burgo, não obstante dar-se ares de menina vaidosa e autointitulada de pérola de qualquer coisa, onde se vivia sem grandes sobressaltos a não ser que se estivesse envolvido na política nacionalista. Para a notoriedade do caso de igual modo concorreu a postura da Igreja Católicas, feroz perseguidora de acções ou actos que pudessem ser considerados não rigorosos em termos de valores sociais e ou religiosos e por, de igual modo, ser o iminente jurisprudente um conhecido ateu, nem reverenciando qualquer um dos milhões de Deuses da sua nativa Índia.

Certamente que o Juiz foi involuntariamente ajudado por um outro acontecimento insólito, o primeiro desvio de um avião por nacionalistas angolanos, para Brazzaville, dois dias antes e conforme constou no comunicado da PIDE do dia 4 de Junho.

“No dia 4/6/69, pelas 15.30, o avião C-3 matrícula CR-LCY, da DTA, da carreira Luanda /Sazaire, com 5 tripulantes e 12 passageiros a bordo, foi obrigada a mudar rumo para Ponta Negra pelos seguintes criminosos armados: -LUÍS ANTÓNIO NETO, o “Loló”, solteiro, estudante, nascido a 4/11/47, natural de Luanda, filho de Alberto António Neto e de Josefa Luís António Neto e residente em Luanda. –

DIOGO FERNANDES JACINTO LOURENÇO DE JESUS, solteiro, funcionário do Laboratório de Engenharia de Angola, nascido a 2/11/941, natural de Luanda, filho de Jorge Jacinto de Jesus e de Ana Lourenço de Jesus e residente em Luanda. –

MANUEL CAETANO SOARES DA SILVA, solteiro, funcionário da Imprensa Nacional de Angola, filho de Luís Gomes Soares da Silva e de Isabel Luciana Soares da Silva e residente em Luanda.

O assalto teve início a meio do percurso Ambrizete/Sazaire, quando Manuel Caetano Soares da Silva entrou bruscamente na cabine de pistola em punho e intimou a tripulação a seguir para Brazzaville. Ao mesmo tempo, o Luís António Neto, de frente para os passageiros, ostentava uma GMO fazendo menção de lhe tirar a clavilha de segurança. Nesta altura, porém o passageiro Mário Carneiro envolveu-se em luta para lhe tirar a granada, sendo auxiliado pelo radiografista Luís Torres e Arménio da Mata, 1º subchefe da PSP. Entretanto o assaltante Diogo Fernandes Jacinto Lourenço de Jesus, que se encontrava na retaguarda dos passageiros, ordenou a Luís António Neto, o “Loló”, para lançar a granada, sublinhando a ordem com dois tiros de pistola que perfuraram o tecto do avião”.

Com toda esta comoção que a polícia política portuguesa não conseguiu evitar e esconder, a sentença do Juiz Pran Gupta até deveria ter passado despercebida não fossem os católicos e demais denominações protestantes com sede em Luanda, terem-se sentido indignados e disso terem feiro bandeira de luta.

O homem foi destratado de toda a maneira e feitio, no fundo não era português de primeira para além de a sua terra ter sido usurpada sem apelo nem agravo, segundo Portugal, pela Índia em Dezembro de 1961.

Como poderia um monhé ateu defender os interesses da Santa Madre Igreja Católica Romana Apostólica, os bons costumes e hábitos das populações ditas civilizadas?

Não fosse a tensa situação política, talvez até o tivessem destituído e mandado par Portugal a fim de ser mantido sob um olho pidesco muito mais próximo e efectivo.

Mas quem foi o causador ou, melhor, a origem do imbróglio em que o nobre Juiz se metera? Pelo que já se poderá ter depreendido, teria que ser um outro cidadão de segunda classe, neste preciso caso de terceira por ser negro, Estéfano Tuluka, rico comerciante de café a habitar em Luanda.

Tuluka herdara, em 1950, com vinte e cinco anos, vastas terras da família a que os portugueses ainda não haviam metido mão, sabe lá Deus porquê. Ciente de que o café valia mito dinheiro, conseguiu umas mudas, mandou roubar outras tantas e assim deu início a um negócio que lhe veio a ser de prosperidade e abastança. Com o advento da luta armada, sentiu-se mais protegido, havia que começar a tratar os negros melhor, sobretudo aqueles que representavam algum peso económico para a Província. Foram-lhe facilitados créditos e alargou a produção pelo resto do terreno ainda improdutivo e que viria a transformar-se numa bela fazenda. Em 1969, Estéfano Tuluka era um nome reconhecido como produtor de café, não obstante a descriminação natural dos colonos menos abastados e de grande parte da população branca. Conseguiu construir uma casa enorme nos arredores ainda musseque da Vila Alice e em relativamente pouco tempo outras seis. Não satisfeito, começou a comprar os terrenos à volta e anos poucos depois aquela área passou a ser conhecida como o Musseque Tuluka até ao advento da Independência.

Pela força do poder económico conseguiu dar uma boa escolaridade aos filhos, três licenciarem-se em agronomia e as duas filhas acabaram por esposar roceiros brancos endinheirados do interior, o que o levou a sentir-se muito honrado pelas mesmas terem conseguido melhorar a raça com a vasta prole que mais tarde se seguiu.

Em 1966, não esquecendo as origens e cultura que lhe eram intrínsecas, Estéfano Tuluka contratou o mais afamado quilamba de Luanda, José Ilídio, mais conhecido por Ngola Yetu, junto ao qual quase todos os chefes de posto locais e das redondezas se iam lavar frequentemente e fechar qualquer possível buraco deixado inadvertidamente aberto pelo qual o inimigo pudesse entrar e fazer estragos. Branco é branco, mas branco em África é branco em África e os administradores colonias bem o sabiam, não fosse o diabo tecê-las.

Ngola Yetu tinha por tarefa principal velar pelos sucesso permanente dos seus empreendimentos numa Angola em franco desenvolvimento, e pelo bem-estar da família, mantendo tudo permanentemente purificado.

Terá sido em 1968, numa altura em que se verificou uma estiagem mais ou menos prolongada, quando baixou sobre grande parte das suas terras, sobretudo nas áreas mais ensolaradas, um flagelo conhecido como a praga do Ácaro vermelho o que reduziu os índices de produção e por consequência o das vendas, por ele não ter tratado a tempo uma desgraça que até nem era dos mais perigosas para os cafeeiros.

De imediato Ngola Yetu foi chamado e indagado de como não previra o flagelo e tomara as devidas e cabíveis medidas para que o facto não se tivesse produzido, sobretudo quando era pago que nem realeza. Afinal que quilamba era se não controlava o imprevisível, conforme sua fama fazia jus e que ele garantira de infalível?

Recebera mais de dois anos de salários volumosos para a época, sem falar nas bicicletas para ele e familiares, nas capoeiras de vime cheias de galinhas, galos, patos e cabritos sem fim, nas hortícolas e frutos. Regularmente levava-o às terras cafeícolas onde o mestre conduzia várias minuciosas e elaboradas cerimónias purificadoras que deveras impressionavam Estéfano Tuluka.

Não aceitava deste modo, a falibilidade do seu protector pessoal que, fosse nos tempos de hoje, certamente teria canudo passado por uma qualquer universidade americana nessas ciências. Decidiu apresentar queixa em tribunal e se bem o pensou, melhor o fez.

Quando se soube em Luanda qual o teor da acusação, o caso virou chacota e assunto de conversa generalizada, não muito abonatória a um abastado fazendeiro, supostamente crente e praticante da Santa Madre Igreja Católica Romana e Apostólica.

Estéfano Tuluka apresentara a referida acusação com base em fraude por promessas não cumpridas e por abuso de confiança. Segundo o seu advogado de há muito e que sempre o desaconselhara de se envolver em quimbandices e crenças similares para protecção de seus bens e família, achava que, não obstante o insólito da situação, poderia ter uma boa chance de ganhar pois efectivamente havia um contrato, verbal, todavia contrato, para prestação de serviços especificados entre ele e o mestre José Ilídio, vulgo Ngola Yetu, sobretudo pela parte contratante ter cumprido religiosamente com o que prometera, muitas vezes ultrapassado até.

Quis o destino, ou talvez não, que o Juiz que presidiria o julgamento fosse o ainda não famoso Pran Gupta.

Com a sala do julgamento apinhada de gente de todas as proveniências sociais, jornalistas de máquinas fotográficas na mão, e metade do Marçal em peso. Afinal a origem do Musseque Tuluka tinha aí as suas fronteiras originais.

A sessão teve que ser adiada por duas vezes pois mais parecia um arraial ou uma feira popular do que um julgamento e o Meritíssimo Juiz decidiu que só poderiam estar presentes vinte pessoas, sorteadas à porta, durante os dias que o julgamento durasse e devidamente identificadas por listas de modo a que a mesma pessoa não pudesse atender à sessão por duas vezes. Isso não obstou a que se mantivesse uma larga chusma de povo nas redondezas do tribunal, ávido de saber em primeira mão como as sessões teriam sido conduzidas.

Nunca um quilamba fora levado às barras do tribunal por incumprimento profissional. A profissão corria risco, a não ser que o advogado de defesa conseguisse demonstrar que ser quilamba não era só profissão, mas sim e também uma manifestação religiosa, filosófica até, com base em premonições provenientes dos antepassados e do uso de diversas artes e estratagemas para sua concretização, tudo conforme os hábitos e costumes locais e o direito consuetudinário. Transformar, se pudesse, Ngola Yetu num tipo de sacerdote a quem a providência divina falhara de modo natural, não por dolo.

Nas páginas centrais dos jornais, certamente pago pelas diversas Igrejas em Luanda, começaram a aparecer com regularidade citações bíblicas enquanto decorreu o julgamento, que durou três dias.

"Não recorram aos médiuns nem bus­quem a quem consulta espíritos, pois vocês serão contamina­dos por eles. Eu sou o Senhor, o vosso Deus.  Levítico 19:31, lia-se no Correio da Matinal, do dia 06 de Junho de 1969.

O Jornal de Luanda, que saía ao fim da tarde, na edição do dia seguinte, alertou os cidadãos parafraseando o escriba bíblico que anotara as sábias palavras, em Levítico 20:6: "Voltarei o meu rosto contra quem consulta espíritos e contra quem procura médiuns para segui-los, prostituindo-se com eles. Eu o eliminarei do meio do seu povo”.

No dia final do julgamento que tornou famoso o Meritíssimo Juiz Pran Gupta, mais tarde recambiado para São Tomé e Príncipe para meditar sobre seus ditames jurídicos em Ilha verdadeiramente paradisíaca, o mesmo Correio Matinal, não se sabe se como ameaça e intimidação, retirou das páginas centrais a citação bíblica e escarrapachou-a na página principal, em letras garrafais.


“Saul morreu dessa forma porque foi infiel ao Senhor, não foi obediente à palavra do Senhor e chegou a consultar uma médium em busca de orientação.
1 Crónicas 10:13.”

Não se sabe se terá passado pelas mãos do Meritíssimo Juiz tal jornal ou não, e se passou, não teve influência alguma sobre sua douta sentença que se baseava, palavra mais palavra menos, no facto de considerar que o queixoso Estéfano Tuluka não fora defraudado na sua boa-fé e confiança na fama do mestre Ngola Yetu, como igualmente, e ipso facto, não ter tomado as medidas precautórias para conter a praga, até fácil de ser combatida se detectada a tempo, atirando para cima do mestre José Ilídio, que nada sabia de café e agronomia, as culpas e recusar pagar o que lhe era devido.

O advogado do mestre quilamba pleiteou, e bem, que os serviços para a limpeza espiritual dos bens e família do fazendeiro Estéfano Tuluka sempre haviam sido honradas segundo os preceitos usados há largas décadas pelo mestre, herdados de pai para filho há quatro gerações. Em conformidade, apelava ao Meritíssimo Doutor Juiz que o réu fosse mandado em liberdade e ressarcido com valor monetário substancial pelas perdas causadas no que refere ao seu bom nome profissional e místico, aos danos morais envolvidos e aos gastos a que foi obrigado a incorrer e que bastante o endividara.

Logo se ouviu um burburinho mais ou menos generalizado e várias sonoras gargalhadas largadas pelos padres Martins e Gerónimo, ao fundo da sala.

O Meritíssimo Juiz Pran Gupta deixou que a tempestade amainasse, ao fim da qual admoestou a audiência, prometendo que evacuaria a sala caso se repetisse.

Após a acusação e a defesa terem esgrimido todos os argumentos, Pran Gupta fez as considerações finais, numa linguagem certamente considerada herética pelos padres presentes, e não só, e o tribunal não veio abaixo quando ditou a sentença for ter sido erguido em estrutura antiga e sólida, nas bases da dilatação da fé e do cristianismo.

Os três polícias presentes, que abandonaram os postos para ouvir a sentença, tiveram que intervir para conter os ânimos da maioria dos presentes, quando o Juiz Pran Gupta mandou o reu ir em paz pois não ficara provado que o expurgo espiritual dos bens e da família do acusador Estéfano Tuluka não fora levado a cabo com o denodo habitual, sobretudo quando o mestre Ngola Yetu lhe prestava serviços há muito. Era, pois, obrigado a indemnizá-lo na quantia de quinze mil escudos e a obrigar-se ao pagamento dos custos totais das despesas do acusado.

Face à repercussão do caso, Estéfano Tuluka foi aconselhado pelo seu advogado a não recorre e deixar o assunto como estava, certamente que mais cedo ou mais tarde a administração colonial e a igreja haveriam de cuidar desse juiz monhé herético, segundo suas palavras.

Foi em 1989 que vim a conhecer um filho de Ngola Yetu, o mestre Serafim José, já igualmente com fama no Marçal e arredores luandenses, e que me relatou toda esta estória quando um vice-ministro amigo que acabara de ser nomeado me solicitou que o acompanhasse, na minha viatura, a uma sessão de lavagem e fechamento espiritual por não desejar entrar sozinho naquele bairro onde poderia ser reconhecido.