quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

O OVO DA AVESTRUZ

O OVO DA AVESTRUZ Galinha que se mete a avestruz tem que aguentar o tamanho do ovo. Laerson Ely O jovem caçador, vergado na imitação de uma avestruz, a segurar um pequeno tronco seco recurvado a fazer de cabeça da ave, avançava cautelosamente contra o vento para o ninho ao pé do qual a ave se encontrava. De súbito, num arranque veloz e a bater os braços como se asas se tratassem, avançou sobre ela que, assustada, logo fugiu. Lesto, antes que o bicho se refizesse, retirou do ninho três ovos, colocou-os no saco de pano e abalou tão rápido quanto chegara. Graças a essas habilidades, maiores do que as dos seus companheiros de caça, fora-lha dado o nome de Haikondo, aquele que persegue a caça através das pegadas reveladas, e por esse motivo não lhe faltavam pretendentes às quais ainda não cedera, talvez por considerar que não era o tempo. Já tinha pensado, para quando o momento chegasse, no tipo e tamanho da jarra que conteria o mel e que serviria como a parte mais reveladora do dote. Há muito que apreciava o andar da Mingana, mulher de força, o seu traseiro indicava que seria boa parideira, a mãe própria para a continuidade do grupo. Contente, encetou o caminho de regresso e assustou-se quando um enorme Louva-a-Deus castanho lhe passou em voo rasante frente ao rosto, indo aterrar no arbusto logo à frente. Seria que os espíritos divinos, o Sol, a Lua, ou a Estrela da Manhã, estavam a tentar fazer-lhe saber que chegara a hora de efectivamente procurar por companheira? Ou talvez fora o todo-poderoso deus Goaxa que habita as colinas do Tsodilo e governa o mundo através espíritos dos antepassados em várias das suas cavernas na Colina Feminina, no deserto que lhes é tão querido, o Kalahari, que lhe mandara o Louva-a-Deus? Ou talvez o mesmo deus, a partir de outro lugar mais sagrado, perto da Colina Masculina, onde o primeiro de todos os espíritos se ajoelhou e orou após ter criado o Mundo, tendo deixado impressas para todo o sempre as marcas de seus joelhos na pedra? Teve dúvidas sobre como agradecer, porque esses deuses e espíritos eram de outros povos mais para o Norte, também seus parentes, mas não os que bem conhecia. Para ele e os seus, a força superior suprema era Gamab, deus do céu, de igual modo deus do destino. Lá de cima, esta ente lança flechas cumprindo a missão de lhes mandar desgraças, doenças que até poderiam ser curadas em danças perto do fogo sagrado ou mesmo, se chegada a hora, enviar-lhes a morte. Contra isso ele nada podia fazer a não ser invocar os espíritos e observar as danças rituais. Entrou na sua casa, feita de troncos verdes vergados enterrados no chão e coberta por esteiras de junco. Colocou os ovos numa espécie de bacia, no chão, e preparava-se para sair quando ouviu, vinda de um deles uma voz doce, melódica. - Haikondo, Haikondo. Deu dois pulos, aterrorizado, nunca ouvira um ovo a falar e muito menos a tratá-lo pelo nome. Só não fugiu porque sentiu os pés enraizados. Ajoelhou-se, diminuído, transpirando suores que nunca tivera. - Vai-te, espírito do mal. - Balbuciou. - Ouve-me bem e não te espantes nem fujas. Sou a Kamukushu. - Kamukushu? – Perguntou, não tirando os olhos dos ovos e pronto a fugir. - Sim, Kamukushu. - O que desejas de mim? Levou algum tempo até ela responder. - Um poderoso feiticeiro aprisionou-ma neste ovo, de onde me ouves. Mais assustado ainda, revirou os olhos duas vezes, quase que não conseguia falar. - O que desejas de mim - Repetiu, gaguejando. - Se me libertares serei a tua mulher e trar-te-ei toda a felicidade. - Kamukushu? – Perguntou, ainda meio aterrorizado. - Sim, Kamukushu. Para me libertares vais ter de ir pedir a Kandjedje, o curandeiro, para organizar a dança e o ritual de cura. Ainda atónito, permaneceu a olhar para o ovo, sem se dar conta que tremia, em sudações. - Cuida bem de mim, esconde-me para que ninguém me ache e me leve. Acabou por se recompor o suficiente para parar de tremer e indagar, suspeitoso. - E Kandjedje ele vai acreditar? - Ele sabe de tudo das nossas vidas e pode comunicar com os antepassados. Se for preciso, pode vir falar comigo. Na noite seguinte, à roda de um fogo com todos presentes e sob o brilho da lua-cheia, o ovo foi colocado no centro sobre um pedaço de pano coberto de areia, como se de um ninho de avestruz se tratasse. Por fim Kandjedje levantou-se e começou a andar à volta do mesmo, saracoteando ligeiramente numa cantilena que só ele percebia o significado. Os outros iam batendo palmas e marcando o compasso, ocasionalmente dois ou três levantando-se e mimicando os movimentos ora da avestruz ora do antílope. Ao fim de um longo tempo, entrou em transe e caiu por terra, em tremeliques e sons guturais qua mais pareciam o roncar de um grande felino. - Ó grande Gamab, deus do céu e da fatalidade, tu que disparas flechas para nos tirar a vida, agora é a vez de a dares a Kamukushu, menina que Gunab aprisionou nesse ovo. O número de gente a dançar e a saracotear foi aumentando, a pequena comunidade participava por inteiro, a libertação de Kamukushu acabava por pertencer a todos. - Ouve a voz implorante dos teus, liberta-a, pois, o seu futuro marido, Haikondo, a aguarda com impaciência, ele a encontrou perdida no deserto no ninho da avestruz. O som cadenciado das palmas aumentou e os presentes começaram a cantar em uníssono. Kandjendje sentou-se, espumando pela boca ressequida. - Ó Heitsi-eibib, filho da vaca e da relva sagrada que ela comeu, grande caçador que sempre nos alimentou e que trucidou Ga-gorib o monstro. Liberta a nossa filha Kamukushu. - Liberta a nossa filha Kamukushu. – Rogavam todos, batendo as palmas em cadência e em uníssono. E num ápice o céu escureceu, o trovão ribombou e a água caiu em cântaros, apagando o fogo. Todavia ninguém se moveu, ciente que Gamab falava. O curandeiro chamou por Haikondo que logo se apresentou. - Toma a tua mulher. – Disse, entregando-lhe o ovo. Este recebeu-o com todo o cuidado, segurando-o com ambas as mãos, aguardando pelo que em seguida poderia vir. - Agora vais atirá-lo ao ar, bem alto, e correr para casa e aguardar até a tua mulher Kamukushu bater as palmas para entrar. Ficarás sentado na esteira, com as pernas cruzadas. Três vezes ela terá de bater e tu perguntarás, quem é. Percebeste? Caso faças algo errado, ele regressará ao ovo para todo o sempre. - Sim, grande Kandjenje, percebi. E largou a correr para a casa, como se perseguido por uma fera. Pouco tempo depois ouviu passos e seu coração disparou, teria sido atingido por uma flecha envenenada de Hai-uri, o devorador de carne humana? Controlou-se e respondeu ao primeiro bater de palmas, conforme os ensinamentos anteriores. - Quem é? - Kamukushu. Novamente ouviu o suave bater de palmas, parecendo que o vento as trouxera. - Quem é? -Kamukushu. Ao ouvir o terceiro chamamento, quase desmaiou de emoção, sua vida mudaria por completo em breve. - Quem é? - Kamukushu. Puxou para o lado a esteira que servia de porta e viu, perante ele a mais linda mulher que Gamab lhe poderia ter ofertado. Sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Como a esposa não tinha família carnal, foi ter com Kandjenje e entregou-lhe o mais adornado dos vasos de mel que conseguiu encontrar, um pesado molhe de lenha e prontificou-se a acarretar a sua água a fim de que a união fosse consumada. Lá longe, no meio do deserto, ao soprar dos ventos cálidos do entardecer, as avestruzes rodopiaram em alegre sapateado danças até então desconhecidas.