quarta-feira, 28 de novembro de 2018

O SENHOR DAS ÁGUAS

EXCERTO DO MEU PRÓXIMO LIVRO A SAIR BREVEMENTE E PUBLICADO PELA LEYA/TEXTO EDITORES


PRIMEIRO ANDAMENTO
A AURORA
Allegro

O fascínio pelo mar, essa vastidão sem fim ora verde ora azul, às vezes negro, aprisiona-me, irreverente, no afago das lendas eternas que lhe são particulares e locais umas, mundanas outras.
Arrasta-me no sulcar de suas águas, como casca de noz a bolinar ao sabor dos ventos mansos.
Compele-me a um longo caminhar sobre ele até ao infindo, não como timidamente fez o Sábio num lago.
Impele-me pelo verde azul que o tinge, resguarda-me na negrura profunda e tenebrosa dos abismos que oculta.
O mar é o bem-querer do luar ondulante e perene do astro fêmea que jamais o repudia.
E quanto mais me sinto ligado a ele, mais surpreendente acho esse fascínio. Será porque o meu umbigo foi enterrado, em cerimónia assombrosa, tão longe dessa imensidão? Por pertencer a terras distantes, de florestas verdejantes onde nunca se ouviu o seu canto, o seu murmurar manso ou o seu rugir furioso e não se conhece suas entranhas prenhe de vida e mistério?
Porém descubro não ser surpreendente, o termo certo para expressar esse fascínio. Não existirá uma outra palavra que revele ou destape esse sentimento, essa incerteza? Não creio que seja uma dúvida filosófica, não sinto uma necessidade premente de encontrar uma explicação racional, não é uma dúvida existencial. Talvez porque não encontre resposta única, vêm-me à mente dezenas de outras palavras que teriam o mesmo fim e, deste modo, resta-me o conselho de Pitágoras: em estado de dúvida, suspende o juízo.
Não o suspendi, antes pelo contrário, vasculhei minha mente por outra e, ao fim de uns dias, acabei por encontrar a palavra que desejava, de uma maneira singular e até caricata.
Uma noite meio chuvosa, até certo ponto encantadora, fui levado por dois jovens poetas para um espaço cultural no Cazenga. Dessa noite, entre muitas sensações e pasmo, evoco a corrida desgarrada das sombras elásticas das ventoinhas no tecto pelas paredes pardacentas do recinto.
Recordo, ainda, apalpar a música com olhos de viandante atento e por qualquer razão, sentir-me a pisar o mato dos cafezais que de criança me cingiram no perfume indelével do seu florir, pegadas deixadas a que me agarro no meio da dissonância do local, talvez por não me sentir à vontade.
Num palco improvisado, vários bardos espalham, por turnos, em voz de elevada ressonância, poética de sua lavra. Numa mesa cerca, os filósofos da praça em cavaqueira acalorada sobre o sentido da vida e  mais afastada, junto ao bar, ponto estratégico para sua voz roufenha, uma cantora de jazz duvidoso.
Imprevistamente, nas asas de um morcego que se dependurada de uma das vigas, surge-me a palavra substituta de surpreendente, que a esmo procurava. Devia ser um habitué da casa, pois notei meio surpreso que ninguém reparava. Voou à volta várias vezes em bailado sinuoso e foi pendurar-se no mesmo sítio, talvez à espera que a plateia o aplaudisse, agradecida.
Esquisito, é a palavra que me foi desenhada no espaço pelo bailado alado do orelhudo, como se tivesse propositadamente sido escrita para mim e muito mais sentido achei ela ter, quando por acaso meus olhos pousaram, em espanto, na frase escarrapachada em letras garatujadas na parede atrás do bar.

EM ESTADO DE DÚVIDA, SUSPENDE O JUÍZO.
Man Verdades, o Sócrates do Cazenga.

Sem qualquer réstia de incerteza, agarrei-me freneticamente a esquisito, por saber que a frase não pertencia a esse filósofo mas sim a Pitágoras e também por que ciente da fragilidade das palavras, da sua capacidade intrínseca de gerar conflictos, de significarem o que cada um deseja ou não. Esquisito, para o médico nada tem a ver com o esquisito ao meu reclamar, no alfaiate, de uma manga ligeiramente mais curta do que a outra no fato que me confeccionou.

O MEU BLOGUE ANTIGO, BEM ANTIGO, COM ESSAS MUDANÇAS TODAS NO BLOGGER DESAPARECEU, INFELIZMENTE. ANOS E ANOS DE TRABALHO VOOU.

Começo por desejar a todos/as futuros/as leitores/as umas Festas Felizes