sábado, 9 de abril de 2022

VERSÃO BRASILEIRA DE OS VENTOS AO SUL

Uma viagem ao passado é quase sempre uma aventura carregada de místicos elementos que abalam os nossos sentidos e sensibilidades. Quando o condutor do trailer é excelente, os detalhes não passam despercebidos, inclusive os cheiros nos arrebatam e nos enobrecem, pela peculiaridade com que somos brindados no rigor da construção das personagens e cenários. É assim no romance histórico. É assim em “Os Ventos ao Sul”, de Fragata de Morais. António Quino Na pratica, a crítica literária incorpora-se na instituição literatura como praxe mediadora, que assume o (in)grato papel de dissecar o que o sistema de leitores não faz por falta de conhecimentos ou de domínio sistémico dos meios. O crítico vai, assim, limitar-se a mostrar um possível caminho de leitura interpretativa, metodizando conceitos para melhor se observar a obra como uma estrutura homogénea composta por um conjunto (“corpus”) de textos. Não sendo sua função validar ou autenticar qualidade, a crítica literária ajuda a melhor olhar a identidade do texto como um objecto literário, tornando evidente a relação entre a lua e o sol da obra, nomeadamente a pragmática (multiplicidade de sombras) e a emblemática (a luz que permite observar e a conservar a identidade). A escola tradicional também indica o caminho de múltiplos olhares para o texto literário com as lupas que permitem, ao leitor (aluno), aprender a identificar géneros, categorias, subgéneros ou talvez transgéneros. Nesse contemplar crítico que a escola tradicional nos doa, as características ou categorias flexíveis assumem-se como cartões de identidade devido aos traços estruturais, semânticos, sintácticos, fonológicos, formais, contextuais e outros. São apenas caminhos de múltiplos olhares. Através de um desses olhares, pode-se distinguir a natureza literária do objecto literário, designando assim critérios de distinção baseados em certas normas. É possível, com base nisso, não se confundir texto literário com qualquer um outro texto na acepção universalista do termo. E se entendermos literatura enquanto arte, seria pleonástico reafirmar que nem toda obra imprensa é literatura, assim como nem todo o autor é escritor. NO CORPUS DOS VENTOS AO SUL Já o dissemos acima: o plano crítico e a escola tradicional reconhecem que há dissemelhanças entre géneros, categorias, subgéneros ou talvez transgéneros, diferenças marcadas por traços estruturais, semânticos, sintácticos, fonológicos, formais, contextuais e outros. Ora, o género literário é uma categoria de composição literária. Conforme a divisão clássica de filósofos da Grécia antiga, como Platão e Aristóteles, desde a Antiguidade, os géneros literários agrupam-se em três: narrativo ou épico, lírico e dramático. Esses três pilares primários abrangem inúmeras classes aparentemente menores, comumente denominadas subgéneros. E é assim que passaremos a classificar, nesse ensaio, o romance histórico; subgénero, em cujo relvado jogará a obra “Os ventos ao sul”, de Fragata de Morais. “OS VENTOS AO SUL”, que narra peripécias centralizadas nos Seculos XIX e XX, é um romance estruturado em quatro tomos, designadamente “O arrebatado”, “O degredado”, “O aventureiro” e, finalmente, “Os seguidores”. Como o próprio Fragata de Morais apresenta, a obra retrata “A saga de uma família que tem sua origem no Porto [Portugal] em 1813 e cujo protagonista enfrenta o poder sendo deportado pela coroa portuguesa para Luanda a fim de cumprir uma pena de degredo de cinco anos”. Nessa narrativa histórica, ficcional e discursiva, a maior odisseia do personagem “precursor” inicia, após o cumprimento da pena, em terras dos povos Ambó. Diria que o referido romance preencheria bem um plano de aula, cuja narrativa se gruda e cabe na armadura de um romance histórico. E é nessa via terciária que conduzirei o meu texto. IDENTIDADES DO SUBGÉNERO As teorias ensinam-nos que o romance histórico é marcado por três destacáveis faces. 1. Num primeiro aspecto, defende-se que o facto histórico deve ser o ponto de partida para a construção do facto literário. Ou seja, a ficção deve representar e apresentar o passado histórico com qualidade “fotográfica”. Assim, a dado passo da narrativa, a história solicita a aferição do leitor sobre determinados elementos da própria narrativa. 2. Num segundo marco, o autor busca legitimar os factos históricos através de documentos e referências históricas. Por trás disso há a comunicação com o descrito no primeiro aspecto. Ou seja, a ficção encontra uma comoda almofada na história. Com base no texto, as referências históricas de monumentos como a Fortaleza de S. Miguel descrita na obra permitem criar uma maior fiabilidade do facto literário. É a almofada que a ficção colhe da história. 3. Num terceiro momento, realça-se no romance histórico o caso de haver uma relação intrínseca entre os valores éticos e os morais, tanto nas personagens como nos temas. Este aspecto é justificado pela necessidade quase patológica do romancista em afrontar a herança colonial, algo que abordaremos mais adiante. A obra que temos estado a analisar é rica nesse aspecto. O narrador questiona a qualidade da justiça da natureza, bem como a qualidade da moralidade da comunidade (humana), que não poucas vezes actua cega apenas porque pretende respeitar uma certa tradição dos homens. Se nos dois postulados estamos em presença de alguma estabilidade e harmónica relação, nesse terceiro já observamos conflito, pois a narrativa no romance histórico incide sobre o discurso do oprimido contra o do opressor. A afirmação de uma identidade pressupõe a negação de outra. Assim é com as nações nascidas de conflitos identitários entre colonizadores e colonizados, como fica espelhado no livro. O eterno conflito entre o subjugado e o subjugador, mais uma vez, é descrito como um elemento desagregador cultural, legitimando o marco centrista que privilegia a identidade do colonizador em detrimento do colonizado; do oprimido que se vê subalternizado na sua essência. Tal como verificamos em Fragata de Morais, também é notório entre outros romancistas a permanente necessidade de enfrentar a herança colonial, procurando deixar isso patente nos eventos que são expostos ao longo da narrativa. A derrota do opressor é celebrada. Mergulhando no texto, por o romance histórico ser um subgénero literário, geralmente em prosa, em que a narrativa ficcional se aclimata no passado, o autor procura levar o leitor a apalpar o passado, conforme defendem Ian Mortimer e Walter Scott. Fragata de Morais traz-nos um bom exemplo, reportando marcas de um século em que os transportes ainda funcionavam sob tracção animal, e o uso da força terrestre a cavalo como arma de acções de choque ou reconhecimento ofensivo pelo combate contra insurgentes. O autor aclimata o leitor e projecta-o para um tempo do outro tempo, com a descrição de alguma actividade de rebeldia contra o poder instituído. O escritor, ao embrenhar-se no romance histórico, penetra no campo da articulação entre os aspectos ficcionais da literatura e os factos históricos, destacando nele a capacidade da narrativa representar, com qualidade, o passado, bem como o retrato de guerreiros envolvidos em batalhas heroicas no enredo. O romance histórico é prenhe na construção de heróis entre os oficialmente rebeldes. Aquele que as autoridades coloniais descrevem como sublevado, o romancista transforma-o em protagonista, com bravura e humanidade. Personagem fácil de ser prezada pelo leitor. É, por isso, frequente observarmos na narrativa uma defesa da identidade cultural própria dos países, e os seus movimentos revolucionários ou de revolta, construindo-se heróis. O romance histórico foi, e ainda é, muito utilizado para sustentar a ideia de independência de povos subjugados por regimes coloniais. Pode-se ainda afirmar que, nas suas identidades contemporâneas, o romance histórico também se caracteriza por relativizar, de forma crítica, os factos ficcionais com a história oficial, pois traz nas narrativas várias vozes contestatárias incarnadas nos personagens. ELEMENTOS DA NARRATIVA Para o romance histórico, a narração é uma exposição organizada de acontecimentos reais ou imaginários. Porque construir um texto narrativo não é só relatar um acontecimento, o autor assume a preocupação de criar um cenário espacial, cultural e social favorável à construção narrativa de nação, privilegiando as relações entre o conteúdo e os contextos históricos, a tal relação entre o facto histórico e o facto literário. Também, quando procuramos destacar a identidade, ou identidades, do romance histórico, a chamada autenticidade de cor local deve ser preservada, por aglutinar a informação histórica e o passado como um todo estruturante, espelhando uma realidade acabada. Por aqui, a quantidade e a qualidade de pesquisa do romancista ajuda a definir a qualidade de cor local. É importante que o escritor tenha o conhecimento histórico para o retratar. Aliás, como nos lembra Umberto Eco, é preciso construir o mundo que o romance histórico retrata. Com “Os ventos ao sul”, Fragata de Morais recria cheiros através da descrição de cenários, conduzindo o leitor a reviver o momento histórico da narrativa. Na prossecução entre os factos históricos e literários, Fragata de Morais edifica relações de personagens que aproximam o ficcionado do mundo real, trazendo vivências e contextos dominados por realidades documentalmente comprovadas, ou não, com figuras imaginárias, coabitando com outras reais, que preenchem o espaço da narrativa. No sul do romancista angolano há mesmo um sul de povos que resistiram heroicamente à dominação colonial portuguesa. Há, portanto, uma tentativa platónica do romancista contar uma pretensa verdade. É assim que a composição do foco narrativo, dos personagens, do enredo, do tempo e do espaço geográfico é feita de modo que haja concordância com os dados históricos. O escritor, moldando o objecto literário, não perde de vista a forma como o espaço físico é representado no romance histórico. A exposição e representação do relevo ou outros marcos da flora configuram simbolicamente fronteiras territoriais de povos. Árvores, montanhas, chanas, pradarias ou rios são uma característica marcante na descrição do romance histórico, como marco natural da resgatada soberania territorial. Esses mesmos elementos naturais são representações figurativas de divisões entre diferentes grupos políticos e sociais. É por isso compreensível que essas fronteiras naturais marcam divisões territoriais e divisões ideológicas, políticas e até mesmo antropológicas. Ainda sobre os elementos da narrativa que dialogam com o passado, os personagens de Fragata experienciam os movimentos e as mudanças históricas, mas nunca tendo um papel directo nelas, inseridos em um contexto que é maior do que aquilo que compreendem. A história acontece sobre a agenda do autor, que se aproveita da atmosfera para estabelecer padrões de virtudes nacionalistas contra o opressor. FINALMENTE… Em “Os ventos ao sul”, Fragata de Morais apresenta-nos uma narração histórica assinalada por peripécias de povos nos Séculos XIX e XX, iniciado por um destemido jovem português, deportado pela coroa portuguesa para Luanda, que acabou por escrever com letras doiradas o seu nome na luta de resistência à ocupação colonial. A obra é uma venturosa viagem ao passado, que proporcionará aos seus leitores um enriquecimento antropológico dos povos que no sul de Angola se bateram heroicamente contra a ocupação estrangeira. Vale a pena embarcar nessa viagem. António Quino Membro Fundador da Academia Angolana de Letras