O PERUANO
De pé, ali o vislumbrava olhando a
sinfonia deslumbrante orquestrada pelos
raios do sol poente, quando por momentos os dois se fundiram em um e ambos
submergiram nas pacíficas águas do quente Atlântico.
No dia seguinte, à mesma hora e local,
tornei a vê-lo. Talvez preparando-se para se alçar como estrela da noite ou ser
engolido pelo reino de Mutakalombo, o dono dos mares e suas profundezas.
Apressadamente dirigi-me para onde ele
estava que, pressentindo-me, virou a cabeça e viu-me. Voltou-se novamente para
o poente e assim permaneceu enquanto eu subia as enormes pedras do pontão
Pareceu-me que rezava ou cantava uma ladainha.
Parei para não o ofender por me
considerar intruso no seu espaço e momento íntimos. Sorriu e acenou para que
subisse.
"Sou o Samuel Astro",
apresentei-me uma vez a seu lado.
"Júlio Florez", respondeu e voltou-se
novamente para o mar.
Aguardei, silencioso, tentando entender
a canção, certamente palavras de gratidão a alguém, pelo que percebi , louvando
seu pai e sua mãe.
De novo ergueu as mãos para a nesga do sol que ainda nos consolava e que em segundos desapareceria, tragado sem piedade pela noite , a nova dona do Mundo ali e então.
Que viva mi papá,
Que viva mi mamá,
Que viva Ramón Castilla
Que nos dio la libertad
Assim que o astro rei mergulhou no
abismo profundo, virou-se e convidou-me a descer.
"Falava em espanhol", afirmei,
curioso.
"Sim, sou peruano filho de África,
trisneto de escravos vindos do Kongo."
"Falava de um Ramón Castilla, quem
é, ou foi?"
"Foi um grande homem do Peru,
aquele que nos concedeu a liberdade, nos libertou da escravatura." -
disse, caminhando.
Talvez não desejasse falar comigo
naquela hora que poderia considerar sagrada ou relevante para si.
Não estando familiarizado com a História
do seu país e não sabia o que dizer, para alem de, estranhamente, me sentir
culpado como se tivesse sido quem exportara seu trisavô para a América Latina.
"Foi um Governador, um Presidente?
Desculpe a minha ignorância."
"Presidente.", respondeu sem
se voltar e continuando a andar.
Decidi abandoná-lo, evaporar-me sem que ele se apercebesse, e com a escuridão
que descera sobre nós, nem mais o via. Ainda hoje não sei se efectivamente
Júlio Florez alguma vez esteve naquele pontão a saudar o oceano que banhava o
seu continente e a agradecer a um bom homem que se revelara humano, nesse
continente aonde o bisavô enterrara seu umbigo africano.
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