segunda-feira, 28 de outubro de 2024
A SENHORA SUNFLOWER E OUTROS CONTOS
O MENINO DE CABEÇA OCA
A avareza tira aos outros
o que recusa a si própria
Séneca
Seria um raro e estranho caso para a Ciência, caso tivesse sido comunicado e estudado, descoberto pela progenitora quando a criança tinha apenas três anos.
Acontecera enquanto Fredo, assim se chamava, brincava sentado no chão na cozinha.
Um pequeno pedaço de estuco desprendeu-se do tecto húmido e caiu-lhe na cabeça. Não chorou, todavia, a mãe percebeu um som igual a quem bate num melão para ver se está maduro.
Perplexa e receosa, chegou-se ao filho e bateu-lhe na tola com os nós dos dedos por três vezes e por três vezes ouviu aquele som vazio.
Fascinada, chamou o filho mais velho, o Joselino, e pediu-lhe para bater no crânio do irmão. Não percebeu a intenção da mãe, mas assim o fez sem indagar fosse o que fosse. Deu três carolos na cabeça de Fredo, e três vezes os dois ouviram a ressonância vácua.
- O teu irmão tem a cabeça oca. – Concluiu, sem qualquer surpresa ou emoção.
Joselino olhou inexpressivo para a mãe, como se o facto de a cabeça do irmão ser oca fizesse alguma diferença.
- Qual a admiração, não viveu assim até hoje? – Perguntou, quase aborrecido.
- Tens razão, mas se aquele pedaço de estuque não se tivesse desprendido do tecto nunca o saberíamos. Deve ter herdado esta condição, do teu pai. – Precaveu-se.
- Deixe a criança em paz, não é por causa deste achado que a vida dela vai ser diferente.
Quão enganado estava.
Meses mais tarde, numa briga na escola, um colega deu-lhe um soco na cabeça e ficou pasmado. Logo correu para a professora que, após ter desferido três pancadas com os nós dos dedos na cabeça do miúdo, no trote que a gordura lhe permitia e a bufar com o esforço, apressou-se a levar as novas à chefia da escola e muito não demorou para que a colégio inteiro rodeasse Fredo, enquanto o director se exibia como um chefe de orquestra batendo ora aqui ora ali na cabeça da agora cobaia, maravilhado com o que ouvia.
Os sons não eram iguais, cada pedaço da cabeça tinha uma repercussão distinta como nos tambores de aço de Trinidad e Tobago.
Porque a criança nunca fora consultada por especialistas uma vez a mãe achar que o assunto pertencia à genealogia paterna, ninguém sabia o que de facto produzia tal fenómeno e na escola, passada toda a comoção inicial, Fredo viu a sua vida tornar-se normal com os colegas a pararem de lhe bater com os nós dos dedos na cabeça para ouvirem o som oco que tal gesto gerava.
Todavia quando o assunto acabou por se tornar conhecido, de imediato apareceram os abutres agenciadores tentando que a mãe assinasse um contrato chorudo que permitisse este fenómeno particular da criança ser desvendado em programas televisivos.
A senhora foi resistindo até onde pôde, não desejava ter a vida do filho transformada num circo, todavia o poder varonil do vil metal acabou por prevalecer. Fredo tornou-se de imediato uma celebridade, até um dia ter tropeçado e batido violentamente com a cabeça numa pedra, rachando a mesma.
Quem estava por perto afirma ter ouvido sair do crânio fendido, como num peido flácido, um longo sopro de ar, porém ninguém deu importância.
Meses após a mãe ao reprová-lo por uma desatenção, bateu-lhe ligeiramente com os nós dos dedos no cocuruto e deu conta que o eco desaparecera.
- Joselino… Joselino… - Gritou aflita.
Bateu novamente na cabeça do filho e quando nada de oco ouviu, deu-se conta de que iria perder a fonte de rendimento que até lhe permitira comprar uma viatura e que caminharia novamente para o afogo.
Faltou-lhe o ar, teve um tremelico e tombou inanimada para o chão.
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