Excerto:
Ainda estava de cócoras, por trás de uma árvore, quando desabou sobre o
acampamento um alvoroço de vozes, gritos e tiros, num claro salve-se quem
puder. Puxou rapidamente as calças para cima e correu para trás de um morro de
salalé entre duas árvores, tentando observar o que se passava, agachado. Viu
gente vestida de panos curtos, muitas azagaias, punhais, porrinhos e algumas,
poucas, armas. Três dos carregadores jaziam no solo, mortos certamente, notou
que nenhum deles era Kandjimbu e o resto conseguira fugir. Os burros zurravam
assutados, alguns aos pinotes sacudindo a carga que já fora parcialmente
colocada sobre eles, alguma já trafegando de mão em mão entre gritos de
alegria. Manteve-se estático, ninguém se preocupava em saber dele, pelo menos
assim julgava, e sempre seria melhor regressar a Benguela sem nada, do que
deixar ali a vida. No meio de toda aquela azáfama, lobrigou Hamutenya, já com
alguns panos ao ombro e vários colares de missangas ao pescoço e enroladas nos
pulsos. Alguém trouxe o que poderia ser considerado uma cadeira, mais um banco,
e viu um homem sentar-se nele, certamente o chefe, o Soma. Aos poucos a ordem
foi-se restabelecendo e viu Hamutenya ser chamado junto do homem sentado e
receber instruções.
"Sô Tônio, pode vir", gritou várias vezes, em direcções
diferentes.
Esperou por uma resposta, que não veio e repetiu o chamamento. António
Labrego ficou sem saber o que fazer, onde estava não lhe oferecia garantia
alguma, bastava seguirem a pista a partir da sua tenda, as marcas das botas
prontamente seriam reconhecidas e talvez viesse a sofrer consequências mais
gravosas. Mesmo assim, necessitando de tempo para pensar, não respondeu.
Viu o chefe sorrir e a beber alguma da aguardente roubada. Isso deu-lhe a
determinação de se apresentar, preferia falar com ele sóbrio de que já
embriagado. Notou que tresandava a fezes, não se limpara e sem se levantar para
não se tornar alvo gritou, em umbundu, como sinal de esperança, desejando que
esse povo não fosse odiado por eles.
1) Hamutenya,
ndi-si kulo". (Hamutenta, estou aqui)
Ouviu uma gritaria generalizada de contentamento e observou o chefe a
sorrir, sinalando a Hamutenya para o ir buscar. Por fim levantou-se, tentou
demonstrar porte digno mas não altivo, compôs a roupa e sentiu que a diarreia
se evaporara. Deu uns passos à frente para se revelar e quando notou que fora
visto estancou à espera. Hamutenya, trajado como os outros, vestia um pano
amarrado à cinta e que se dobrava sobre si mesmo e sobre este, amarrada, uma
pele de boi preto, com um outro pano mais pequeno a tapar-lhe as nádegas. Carregava
uma longa azagaia, bem como a sua arma e um punhal á cinta. Aproximou-se a
António Labrego, sorriu-lhe e indicou que o seguisse. Assim foi levado à
autoridade sentada, que se manteve impressionada a olhar.
Aguardou, braços pendentes e tentando não revelar qualquer emoção.
(2) “Ke na sha oshipa... ke na sha oshipa…”, (ele não tem pele) saiu da boca do Ohamba
a exclamação atónita.
Recuaram assustados e o
cimbanda foi chamado para explicar como é que um homem, caso fosse mesmo homem,
não tinha pele.
1) “Ano yee omhepo yashituka ta yeende muunyuni
wovanamwenyo?” (será um espirito a vaguear no mundo dos vivos?) insistiu o Ohamba a olhar
para o cimbanda.
Atiraram-lhe um pau para verificar se o atravessava.
Quando satisfeitos que era um ser humano igual, o chefe agarrou em vário
colares de missangas, observou a qualidade, bebeu mais um gole da aguardente e
falou para Hamutenya, que traduziu.
“Ohamba Shikwete Ndesipakwa dizer branco trazer coisas boas. Branco aqui
não chegar, sô Tônio querer quê, Ohamba preguntar?"
António Labrego sorriu e como sabia que bater palmas era sinal de respeito,
assim o fez três vezes antes de falar, curvando-se ligeiramente.
"Diz ao grande chefe que vim para fazer comércio, trocar coisas, o
que aqui trago por marfim, bois, cera e mel, como bens sabes, saíste de
Benguela comigo. Se for do agrado dele, poderemos continuar estas trocas, uma
mão lava a outra. Nada mais aqui me trás, como bem sabes, repito."
Hamutenya traduziu tudo, esperando António Manuel Labrego que ele fosse
fiel no verter de suas palavras. Ouviu novamente o chefe a falar para
Hamutenya, que se virou para ele.
"Ohamba Shakwete falar sô Tônio tratar bem gente dos carregador, eu
contar, maji branco nunca vir aqui, primeira vez. Chefe dizer sô Tônio vir com
chefe e viver no 2) ehumbu. Regressar no Benguela não pode, branco não pode voltar aqui."
"Diz no chefe que aceito e vou ficar a viver aqui.", achando
ser essa a resposta mais prudente por agora.
Quando as suas palavras foram traduzidas, novamente se ouviram gritos de
contentamento por parte de muitos.
Ficou sem saber o que fazer de seguida, certamente manter-se como estava
e aguardar. Veio-lhe então à mente, talvez como compensação, que o seu Natal
iria ser passado sozinho entre gente que disso nada sabia, se de facto o
mantivessem vivo. Pediu que tudo o que tivesse na sua tenda, seus pertences,
pudesse ser levado com ele ao que o chefe anuiu mandando-lhe executar a tarefa
com Hamutenya e indicando um outro que se encarregaria de a colocar nos burros.
Pensou na mula e decidiu de imediato que a iria oferecer ao chefe. Para ele
pouco lhe serviria a partir de agora.
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