sábado, 15 de agosto de 2020



Excerto:
Ainda estava de cócoras, por trás de uma árvore, quando desabou sobre o acampamento um alvoroço de vozes, gritos e tiros, num claro salve-se quem puder. Puxou rapidamente as calças para cima e correu para trás de um morro de salalé entre duas árvores, tentando observar o que se passava, agachado. Viu gente vestida de panos curtos, muitas azagaias, punhais, porrinhos e algumas, poucas, armas. Três dos carregadores jaziam no solo, mortos certamente, notou que nenhum deles era Kandjimbu e o resto conseguira fugir. Os burros zurravam assutados, alguns aos pinotes sacudindo a carga que já fora parcialmente colocada sobre eles, alguma já trafegando de mão em mão entre gritos de alegria. Manteve-se estático, ninguém se preocupava em saber dele, pelo menos assim julgava, e sempre seria melhor regressar a Benguela sem nada, do que deixar ali a vida. No meio de toda aquela azáfama, lobrigou Hamutenya, já com alguns panos ao ombro e vários colares de missangas ao pescoço e enroladas nos pulsos. Alguém trouxe o que poderia ser considerado uma cadeira, mais um banco, e viu um homem sentar-se nele, certamente o chefe, o Soma. Aos poucos a ordem foi-se restabelecendo e viu Hamutenya ser chamado junto do homem sentado e receber instruções.
"Sô Tônio, pode vir", gritou várias vezes, em direcções diferentes.
Esperou por uma resposta, que não veio e repetiu o chamamento. António Labrego ficou sem saber o que fazer, onde estava não lhe oferecia garantia alguma, bastava seguirem a pista a partir da sua tenda, as marcas das botas prontamente seriam reconhecidas e talvez viesse a sofrer consequências mais gravosas. Mesmo assim, necessitando de tempo para pensar, não respondeu.
Viu o chefe sorrir e a beber alguma da aguardente roubada. Isso deu-lhe a determinação de se apresentar, preferia falar com ele sóbrio de que já embriagado. Notou que tresandava a fezes, não se limpara e sem se levantar para não se tornar alvo gritou, em umbundu, como sinal de esperança, desejando que esse povo não fosse odiado por eles.
1)  Hamutenya, ndi-si kulo". (Hamutenta, estou aqui)
Ouviu uma gritaria generalizada de contentamento e observou o chefe a sorrir, sinalando a Hamutenya para o ir buscar. Por fim levantou-se, tentou demonstrar porte digno mas não altivo, compôs a roupa e sentiu que a diarreia se evaporara. Deu uns passos à frente para se revelar e quando notou que fora visto estancou à espera. Hamutenya, trajado como os outros, vestia um pano amarrado à cinta e que se dobrava sobre si mesmo e sobre este, amarrada, uma pele de boi preto, com um outro pano mais pequeno a tapar-lhe as nádegas. Carregava uma longa azagaia, bem como a sua arma e um punhal á cinta. Aproximou-se a António Labrego, sorriu-lhe e indicou que o seguisse. Assim foi levado à autoridade sentada, que se manteve impressionada a olhar.
Aguardou, braços pendentes e tentando não revelar qualquer emoção.
(2) “Ke na sha oshipa... ke na sha oshipa…”, (ele não tem pele) saiu da boca do Ohamba a exclamação atónita.
Recuaram assustados e o cimbanda foi chamado para explicar como é que um homem, caso fosse mesmo homem, não tinha pele.
1) “Ano yee omhepo yashituka ta yeende muunyuni wovanamwenyo?”  (será um espirito a vaguear no mundo dos vivos?) insistiu o Ohamba a olhar para o cimbanda.
Atiraram-lhe um pau para verificar se o atravessava.
Quando satisfeitos que era um ser humano igual, o chefe agarrou em vário colares de missangas, observou a qualidade, bebeu mais um gole da aguardente e falou para Hamutenya, que traduziu.
“Ohamba Shikwete Ndesipakwa dizer branco trazer coisas boas. Branco aqui não chegar, sô Tônio querer quê, Ohamba preguntar?"
António Labrego sorriu e como sabia que bater palmas era sinal de respeito, assim o fez três vezes antes de falar, curvando-se ligeiramente.
"Diz ao grande chefe que vim para fazer comércio, trocar coisas, o que aqui trago por marfim, bois, cera e mel, como bens sabes, saíste de Benguela comigo. Se for do agrado dele, poderemos continuar estas trocas, uma mão lava a outra. Nada mais aqui me trás, como bem sabes, repito."
Hamutenya traduziu tudo, esperando António Manuel Labrego que ele fosse fiel no verter de suas palavras. Ouviu novamente o chefe a falar para Hamutenya, que se virou para ele.
"Ohamba Shakwete falar sô Tônio tratar bem gente dos carregador, eu contar, maji branco nunca vir aqui, primeira vez. Chefe dizer sô Tônio vir com chefe e viver no 2) ehumbu. Regressar no Benguela não pode, branco não pode voltar aqui."
"Diz no chefe que aceito e vou ficar a viver aqui.", achando ser essa a resposta mais prudente por agora.
Quando as suas palavras foram traduzidas, novamente se ouviram gritos de contentamento por parte de muitos.
Ficou sem saber o que fazer de seguida, certamente manter-se como estava e aguardar. Veio-lhe então à mente, talvez como compensação, que o seu Natal iria ser passado sozinho entre gente que disso nada sabia, se de facto o mantivessem vivo. Pediu que tudo o que tivesse na sua tenda, seus pertences, pudesse ser levado com ele ao que o chefe anuiu mandando-lhe executar a tarefa com Hamutenya e indicando um outro que se encarregaria de a colocar nos burros. Pensou na mula e decidiu de imediato que a iria oferecer ao chefe. Para ele pouco lhe serviria a partir de agora.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

CONTOS DE SAMUEL ASTRO

 A SAIR BREVEMENTE


 

O PERUANO

 Vi-o pela primeira vez mais como uma sombra que se pronunciava mar adentro. De pé, no pontão de pesadas lajes colocadas para desafiar o mar quebrando-lhe a força entre as praias naquela língua de areia que já fora a residência dos dignatários enviados pelos reis do antigo Kongo para a recolha do nzimbu, a moeda oficial do reino. Estas mesmas areias sujeitaram durante sete anos, por ordem do grande Ngola, o capitão Paulo Dias de Novais, o branco vindo do mar em barcos jamais vistos.

De pé, ali o vislumbrava olhando a sinfonia deslumbrante orquestrada  pelos raios do sol poente, quando por momentos os dois se fundiram em um e ambos submergiram nas pacíficas águas do quente Atlântico.

No dia seguinte, à mesma hora e local, tornei a vê-lo. Talvez preparando-se para se alçar como estrela da noite ou ser engolido pelo reino de Mutakalombo, o dono dos mares e suas profundezas.

Apressadamente dirigi-me para onde ele estava que, pressentindo-me, virou a cabeça e viu-me. Voltou-se novamente para o poente e assim permaneceu enquanto eu subia as enormes pedras do pontão Pareceu-me que rezava ou cantava uma ladainha.

Que viva mi papá,
Que viva mi mamá,
Que viva Ramón Castilla
Que nos dio la libertad

Parei para não o ofender por me considerar intruso no seu espaço e momento íntimos. Sorriu e acenou para que subisse.

"Sou o Samuel Astro", apresentei-me uma vez a seu lado.

"Júlio Florez", respondeu e voltou-se novamente para o mar.

Que viva mi papá,
Que viva mi mamá,
Que viva Ramón Castilla
Que nos dio la libertad

Aguardei, silencioso, tentando entender a canção, certamente palavras de gratidão a alguém, pelo que percebi , louvando seu pai e sua mãe.

 De novo ergueu  as mãos para a nesga do sol que ainda nos consolava e que em segundos desapareceria, tragado sem piedade pela noite , a nova dona do Mundo ali e então.

Que viva mi papá,

Que viva mi mamá,

Que viva Ramón Castilla

Que nos dio la libertad

Assim que o astro rei mergulhou no abismo profundo, virou-se e convidou-me a descer.

"Falava em espanhol", afirmei, curioso.

"Sim, sou peruano filho de África, trisneto de escravos vindos do Kongo."

"Falava de um Ramón Castilla, quem é, ou foi?"

"Foi um grande homem do Peru, aquele que nos concedeu a liberdade, nos libertou da escravatura." - disse, caminhando.

Talvez não desejasse falar comigo naquela hora que poderia considerar sagrada ou relevante para si.

Não estando familiarizado com a História do seu país e não sabia o que dizer, para alem de, estranhamente, me sentir culpado como se tivesse sido quem exportara seu trisavô para a América Latina.

"Foi um Governador, um Presidente? Desculpe a minha ignorância."

"Presidente.", respondeu sem se voltar e continuando a andar.

Decidi abandoná-lo, evaporar-me  sem que ele se apercebesse, e com a escuridão que descera sobre nós, nem mais o via. Ainda hoje não sei se efectivamente Júlio Florez alguma vez esteve naquele pontão a saudar o oceano que banhava o seu continente e a agradecer a um bom homem que se revelara humano, nesse continente aonde o bisavô enterrara seu umbigo africano.