Quando me veio a ideia de
elaborar a presente antologia, de imediato se me colocou a grandeza e
delicadeza da tarefa face à vasta gama de escritores nacionais, e sobre o que
eu poderia antever como imaginário, fantástico, real e ou irreal, entre muitas
outras perspectivas, numa sociedade em que as fronteiras entre o mundo visível
e aquele invisível sempre estiveram tão intimamente ligadas.
Face à oralidade das sociedades
africanas, da qual Angola não teria como escapar, este universo de ambiguidade
não poderia deixar de ter residência visível nas diversas obras dos escritores
angolanos que, ao longo dos séculos XIX e XX, foram férteis na produção de
textos em que diversos mundos se interligavam com acontecimentos estranhos, acontecimentos
que com muita frequência fugiam ao entendimento de serem ou não reais perante a
percepção do aceitável e ou do credível.
Óscar Ribas, um dos mais
conceituados nomes da etnografia nacional, nascido em 1909 e já falecido, autor
de vasta obra em que recolheu a extremamente valiosa literatura oral africana
na zona de Luanda, afirmara que os contos ordinariamente reflectem aspectos
da vida real. Neles figuram as mais variadas personagens: homens, animais,
monstros, divindades, almas. Se por vezes, a acção decorre entre elementos da
mesma espécie, outras no entanto desenrolam-se misteriosamente, numa
participação de seres diferentes.
Confrontei-me, deste modo, com a
questão do fantástico, algo que não pode ser explicado via racionalidade, e com
as possibilidades do verosímil versus o inverosímil, o real e o sonho, o
natural e o sobrenatural. O que procurar, o que e como inserir? Seria o
fantástico, o estranho, o maravilhoso e a fantasia contidos na panóplia de obras de escritores angolanos
a mesma coisa? Quedar-me-ia unicamente
com o texto, vamos chamá-lo por contraposição adulto, ou igualmente com o
tradicional, o juvenil e o infantil? Na oralidade africana, contar, o sunguilar, é parte intrínseca da
vida. É às noites, sob o agasalhar dos fogos, que as tradições, os usos e
costumes são propagados de geração em geração, através dos contos, das estórias,
das adivinhas, dos provérbios. Contar, relatar, gravar na memória colectiva é
uma das acções mais antigas da história da humanidade, reflectidas em testemunho
nas grutas espalhadas pelo mundo inteiro.
Acho que me preocupei mais com os
aspectos do estranho, do maravilhoso, talvez mesmo até do insólito, na recolha
que levei a cabo, deixando o fantástico maioritariamente para a literatura
tradicional e para a literatura infantil, narrativas em que o narrador ou o escritor
mais se preocupa com a mensagem, com a valorização moral e com um fim que
transmita uma postura considerada de funcional na sociedade.
Tzvetan Todorov, um filosofo e
linguista búlgaro desde 1963
a viver em Paris, no seu livro “Introdução à Literatura
Fantástica”, estabelece normas a respeito do fantástico na literatura,
diferenciando entre o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Segundo ele, em um mundo que é o nosso, que conhecemos (infira-se
ocidental e moderno), sem diabos,
sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis
desse mesmo mundo familiar. Quem percebe o acontecimento deve optar por uma das
duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto
de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se
produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então essa realidade
está regida por leis que desconhecemos… O fantástico ocupa o tempo dessa
incerteza. Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do
fantástico para entrar em um género vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O
fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais as leis
naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural.
Não irei referir nesta
apresentação o que me levou a incluir um e não outro escritor, até porque a linha divisória não me permitiu
estabelecer fronteiras entre o estranho, o maravilhoso sempre existindo um subgénero transitivo
entre eles. Segundo Todorov, seja como for,não é possível excluir de uma
análise do fantástico, o maravilhoso e o estranho, géneros aos quais se
sobrepõe. Acho que os contos e os excertos de textos mais largos que me
serviram de base, englobam-se largamente no objectivo a que me propus.
Fragata de Morais
Coordenador
DESALMAR
A Vuíla Sabata fugira-lhe a assustada alma.
Precisamente às catorze horas e vinte e cinco minutos do dia 15 Junho de 1975,
quando, emaranhado na mais recôndita raiva animaleja, entre medos incompreensíveis
e razões descontroláveis, esvaziou o carregador da Aka no crânio de um soldado já
morto, mas ainda e para sempre inimigo.
Com a cabeça feita passador, tantos eram os buracos, o espírito do falecido, quem
desfalece morte arrogante vira alma vadia, manteve-se no corpo mais cinco horas.
O que observava lá fora amedrontava-o, como é sabido, as sombras só se habituam
a tal, depois dos vivos apagarem a luz que as faz vaguear, o esquecimento, portanto
com eles não mais bulindo. Assim, acanhou-se, sobretudo por não ter a certeza do furo
mais seguro por onde escapulir.
Acabrunhado, no seio de tanto miolo esfarelado e sentindo-se ainda matéria, não
entendia por que Sabata, não obstante pertencerem a partidos políticos armados diferentes,
esvaziara na cabeça de seu corpo, já inerte, todo um carregador de Aka, enquanto
o pontapeava feito louco desvairado, até se sentir exaurido.
Em circunstâncias similares, teria ele feito o mesmo?
Com este receio mais do que natural, não apreendendo que doravante seria mera
essência desincorporada e que as balas intrusamente lhe haviam subtraído a descartável
matéria, o espírito do soldado inimigo de Vuíla Sabata, optou por habitar aquela moradia
desumana enquanto fosse possível ou permitido, o esburacado crânio de que fora dono.
Todavia intuía a mudança e estranhava não se achar ambientado. Faltava ao corpo
inerte a ligeireza física habitual, o reboliço das correrias pelos bairros pobres da cidade
desconhecida, para onde viera impor a desliberdade do seu partido armado, em relação
ao outro.
Dali a umas horas estaria escuro, e seu cadáver velado por cães vadios e esfomeados.
Seria a hora do adeus mundano. Por enquanto ia-se entretendo a observar a rigidez
a assenhorar-se do corpo, ao qual durante dezoito anos se colara e apegara.
Pasmado, descobriu novas perspectivas, como, por exemplo, a de ver de perto
as rodas dos poucos carros que ousavam passar naquela rua, raspando-lhe o furado
crânio. Porque não o socorriam? Unicamente os cães a rondá-lo, farejando, farejando e
gemendo arreganhados ganidos em alimentadas esperanças de lauta ceia.
Às dezanove horas ganhou coragem, e de um pulo, saiu lesto pelo furo de bala
mais cerca.
Alguns dos cachorros, trespassados por uma súbita corrente fria, fugiram como se
alguma turba de garotos os tivesse apedrejado. Outros sentaram-se no alcatrão deserto a
uivar, até que uma rajada curta de metralhadora os pôs em silvante debandada.
O espírito do então inimigo de Sabata, novamente assustado, subiu célere e ficou
a rondar as árvores do bairro desconhecido até que as estrelas, sombras de perdidos
antepassados, lhe anunciaram o caminho dos errantes, porque morrera fora e longe
dos seus. Para ali quedaria o corpo a apodrecer no quente alcatrão tropical, na manhã
seguinte nada mais do que restos do farto repasto dos cães, a serem atirados para um
qualquer buraco e tapados a pressas nauseabundas.
Estava desprendido dos vivos, já que quem mantém os espíritos em permanente
amofinação, são os que deles se lembram.
Quanto a Sabata, perdeu a alma porque de repente ela sentiu-o gelado, tanto
quanto a água matinal na cachoeira.
Apavorada, nunca antes se vira em tal estado, comprimida com ocultos medos
ancestrais incompreensíveis, anichou-se sem querer no dedo que apertava o gatilho,
testemunhando e participando de todo aquele dano. No momento em que Vuíla Sabata
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Fragata de Morais (org.)
pôs a Aka a tiracolo, para poder pontapear o soldado ainda e sempre inimigo à vontade,
a alma, de tão pequenina e contrita, caiu com o enorme peso da culpa bíblica para o
chão, escoando pela primeira fresta do alcatrão.
Sabata sentiu-se ligeiro e etéreo.
Com o pecado ora esvanecido do seu humano
horizonte, tornara-se, enfim, dono absoluto da inconsciência. Doravante a negação
seria sua rédea, a razão a inimiga visceral, a moral e a ética os vermes com que saciaria os
desejos irreprimíveis da concupiscência da guerra.
Com a ilegalidade de Deus decretada por despacho oficial, Vuíla Sabata, sabendoo
na clandestinidade, afiou os instintos, metamorfoseou-se no abstracto concreto e
reinou senhor incontestado dos irreflexos. Tornando a enfiar um cano de fuzil pelo
recto de Federico García Lorca, de quem nunca ouvira falar, apregoou por tudo quanto
é canto de Angola, “viva la muerte”.
Por essas sendas marchou, ao som dos tambores marciais, a juventude forjada
para as desigualdades entre iguais. Amor sobretudo com desamor se paga, seria o moto,
durante o que pareceu ser uma eternidade opaca.
Mais de duas décadas depois de Vuíla Sabata ter perdido a alma, alguns muitos
ainda se indignam ao lerem no jornal diário, ao verem e ouvirem nos noticiários da
televisão, que o crime, a amoralidade, o apatriotismo, tomou conta das vidas inviáveis
de quase todos.
Esses, devem ser os que constantemente fustigam a esperança jamais banida, na
busca da alma de Vuíla Sabata, para que seja restituída e redimida.
Alma porventura agrilhoada no mais fundo de uma arca libanesa ou indiana,
trancada a sete chaves com cadeado electrónico angolano numa caixa forte suíça, após
ter forçosamente penado longo e tortuoso trajecto, da fenda no alcatrão por onde
escorregara.
in Momento de Ilusão
Campo das Letras, 2000
Chá de Caxinde, 2000