EXCERTO DO MEU PRÓXIMO LIVRO A SAIR BREVEMENTE E PUBLICADO PELA LEYA/TEXTO EDITORES
PRIMEIRO ANDAMENTO
A AURORA
Allegro
O
fascínio pelo mar, essa vastidão sem fim ora verde ora azul, às vezes negro, aprisiona-me,
irreverente, no afago das lendas eternas que lhe são particulares e locais
umas, mundanas outras.
Arrasta-me
no sulcar de suas águas, como casca de noz a bolinar ao sabor dos ventos
mansos.
Compele-me
a um longo caminhar sobre ele até ao infindo, não como timidamente fez o Sábio
num lago.
Impele-me
pelo verde azul que o tinge, resguarda-me na negrura profunda e tenebrosa dos
abismos que oculta.
O
mar é o bem-querer do luar ondulante e perene do astro fêmea que jamais o
repudia.
E
quanto mais me sinto ligado a ele, mais surpreendente acho esse fascínio. Será
porque o meu umbigo foi enterrado, em cerimónia assombrosa, tão longe dessa
imensidão? Por pertencer a terras distantes, de florestas verdejantes onde
nunca se ouviu o seu canto, o seu murmurar manso ou o seu rugir furioso e não
se conhece suas entranhas prenhe de vida e mistério?
Porém
descubro não ser surpreendente, o
termo certo para expressar esse fascínio. Não existirá uma outra palavra que revele
ou destape esse sentimento, essa incerteza? Não creio que seja uma dúvida
filosófica, não sinto uma necessidade premente de encontrar uma explicação
racional, não é uma dúvida existencial. Talvez porque não encontre resposta
única, vêm-me à mente dezenas de outras palavras que teriam o mesmo fim e,
deste modo, resta-me o conselho de Pitágoras: em estado de dúvida, suspende o juízo.
Não
o suspendi, antes pelo contrário, vasculhei minha mente por outra e, ao fim de
uns dias, acabei por encontrar a palavra que desejava, de uma maneira singular
e até caricata.
Uma
noite meio chuvosa, até certo ponto encantadora, fui levado por dois jovens
poetas para um espaço cultural no Cazenga. Dessa noite, entre muitas sensações
e pasmo, evoco a corrida desgarrada das sombras elásticas das ventoinhas no
tecto pelas paredes pardacentas do recinto.
Recordo, ainda, apalpar
a música com olhos de viandante atento e por qualquer razão, sentir-me a pisar o mato
dos cafezais que de criança me cingiram no perfume indelével do seu florir, pegadas
deixadas a que me agarro no meio da dissonância do local, talvez por não me
sentir à vontade.
Num
palco improvisado, vários bardos espalham, por turnos, em voz de elevada
ressonância, poética de sua lavra. Numa mesa cerca, os filósofos da praça em cavaqueira
acalorada sobre o sentido da vida e mais afastada, junto ao bar, ponto estratégico
para sua voz roufenha, uma cantora de jazz duvidoso.
Imprevistamente,
nas asas de um morcego que se dependurada de uma das vigas, surge-me a palavra substituta
de surpreendente, que a esmo procurava. Devia ser um habitué da casa, pois notei
meio surpreso que ninguém reparava. Voou à volta várias vezes em bailado
sinuoso e foi pendurar-se no mesmo sítio, talvez à espera que a plateia o
aplaudisse, agradecida.
Esquisito,
é a palavra que me foi desenhada no espaço pelo bailado alado do orelhudo, como
se tivesse propositadamente sido escrita para mim e muito mais sentido achei ela
ter, quando por acaso meus olhos pousaram, em espanto, na frase escarrapachada em
letras garatujadas na parede atrás do bar.
EM ESTADO DE DÚVIDA,
SUSPENDE O JUÍZO.
Man Verdades, o Sócrates
do Cazenga.
Sem
qualquer réstia de incerteza, agarrei-me freneticamente a esquisito, por saber que a frase não pertencia a esse filósofo mas
sim a Pitágoras e também por que ciente da fragilidade das palavras, da sua
capacidade intrínseca de gerar conflictos, de significarem o que cada um deseja
ou não. Esquisito, para o médico nada tem a ver com o esquisito ao meu reclamar, no alfaiate,
de uma manga ligeiramente mais curta do que a outra no fato que me confeccionou.
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