segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O FILHO




E viu-se outro sinal no céu;
e eis que era um grande dragão vermelho...
e o dragão parou diante da mulher
que havia de dar à luz, para que, dando à luz,
lhe tragasse o filho.
S. JOÃO - APOCALIPSE 12

 

 sete longos anos que  o filho lhe remexia as entranhas. Não havia  dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro, que lhe falava em silêncio penoso.
No início da gravidez os médicos  observaram-na cuidadosamente, todavia, à medida que os meses passavam, insinuaram uma gravidez psicológica.
Ao décimo sete mês, uma amiga, insidiosa, propôs-lhe a possibilidade de uma barriga de água.
“Não sabes o que é, eu explico-te?...”, ofereceu-se.
As íntimas, propuseram os remédios da terra, a visita aos kimbandas, aos adivinhos. Não haveria nada a perder, que não tentasse esconder o que é da terra. Mulher grávida  há sete anos só pode ser curada com a tradição, com o debicar engasgado do galo.
Angustiada, cruzou as longas pernas, vestia o robe de chambre azul cor das águas e reclinou-se no cadeirão de couro da vasta sala de visitas de sua casa.
Acendeu, silenciosa, um cigarro. Não queria ser apanhada em kimbandas. Isso não. Seria  o perder do pudor, sabia que os rótulos arquitectam-se nos vastos silêncios sociais.
Atirou, com displicência, o fósforo para o cinzeiro e serviu, da pequena mesa ao lado uma bebida, levando-a à boca em longos e melancólicos sorvos.
Olhou para o quadro pendurado na parede oposta. Paisagem típica africana, o capim em movimento, fustigado pela brisa da tarde. Suspirou nostálgica, sentindo a paisagem embrenhar-se nos poros das paredes da sala, e o copo da bebida estremeceu na mão, à carícia do vento melódico que soprava do norte. O fumo nervoso do cigarro esvaiu-se no ar, rumo ás nuvens onde pairavam as águias das palmeiras, enquanto que, contemplando o momento de ilusão, acabou por tombar adormecida anestesiada pela angústia do desassossego, ao badalar dos pios angustiados do mocho ora desperto na árvore soberba.
O marido entrou na sala, olhou o rosto tranquilo e ainda fumegado do cigarro meio perdido de cinza, e retirou-o da mão palpitante.
As águias das palmeiras gritaram, estrídulas.
Como todos, igualmente pensara que a estória da gravidez fosse passageira, e por essa razão acarinhara os anseios da esposa, nunca a desfalcando de amor e compreensão.
“Olha a criança mexeu, o nosso filho mexeu, não viste?”, dizia-lhe, mão no ventre ofegante.
E com este acanhamento vestido de verdades aparentes, foi contando aos parentes e amigos as vicissitudes de futuro pai.
Por volta da gravidez psicológica começou a não conseguir pôr cobro à chacota mal disfarçada, aos ditos apenas sussurrados à sua passagem.
O desânimo aproximou-o mais da esposa e passaram horas de deleite encontrando nomes para a criança, para o filho.
“Sim só poderá ser um menino”.
Inventaram creches e escolas.
Mas quando qualquer dúvida renascia, quando o terror se lhe assenhorava da alma, fugia  tinhoso para a amante, pronta e aberta, que o  compensava pela gravidez inexplicável, mesmo se, no expirar do tempo, partia mais triste do que viera e mais vazio do que chegara, revertido criança na estórias meio contadas dos adultos, de ser ele o filho do dragão, o fruto do pecado e da vergonha sempre eterna que lambe as labaredas do inferno.
Seu pai, era tio de sua mãe.
E na descendência dos mal amados, os antepassados obrigá-lo-iam a carregar até aos fins do caminho, a sarna que há sete anos passara para o ventre frutificado da esposa.
Só poderia ser isso.
Agarrou o sufoco e embrenhou o medo nos seios flácidos da amante.
Regressou a casa encontrando a mulher ainda no mesmo lugar, adormecida. Pensou em acordá-la, não o fez, sentou-se no cadeirão e  teve a leve sensação de sentir a carícia do vento no rosto.
No véu da memória que não era a sua,  o cadeirão de couro da sala era o tronco seco já meio apodrecido no capim onde sua mãe, ainda mulher-meia, tentava agarrar a brisa suave com as mãos, enganando o desespero que a cingia porque, em breve, seria a época das queimadas, a derruba do nicho incestuoso do amor, e assim não poder encontrar-se com o tio para as rezas suplicantes da carne.
No tempo do cacimbo, a terra reveste-se de castanho seco, a mata ressequida é  chama lambedora do fogo-posto, impudico em labaredas devoradoras . De um momento para o outro, o que era  abrigo e escondia momentos prazerosos, nada mais seria do que um descampado com nascente capim verde,  pasto das seixas, dos veados, até mesmo das pacaças mais afoitas.
Na espera do tio, deitou-se não longe do tronco e pressentiu, que alguém se sentara. Soergueu-se com ansiedade mas não, não fora o tio que chegara, aliás tê-lo-ia visto.
Recordou o momento acre-doce de devaneio, da entrega rendida ao latejo do desejar. Tinha quinze anos e o tio vinte e oito. Verdadeiramente nunca conseguira explicar por palavras ou pensamentos conscientes como tudo começara, o que a dominara, possuíra, feita animal envolta nos perfumes do cio manifestado.
Uma tarde de calor, o capim alto observando-a, aconchegando-a, excitando-a ao âmago, foi a carícia que fez jorrar a água das fontes internas do desejo. Abrira a blusa e expusera os seios negros e luzidios ao beijar da brisa, ao  restolhar das folhas próximas das árvores.
Mulher feita, mulher desejando, arfando sem motivo aparente. Mulher fêmea em aromas vaporosos, ainda que não sabendo.
E quando o tio apareceu feito vadio, como que não conhecendo das tardes de calor da sobrinha, ela fez que não sabia do desejo e do ardor, pretendendo que nunca desejara o que então estava pronto e sacrificial.
E talvez até tivesse sido assim.
Na escuridão da eterna culpa e no despir da razão vacilante, em jeito de despedida, sem saberem ou desejarem, na morte da alma entregaram-se arfantes um ao outro.
Deram-se a carne perante os olhares nunca adormecidos dos que eternamente vigiam, dos que vivem nos fundos dos rios e das lagoas. E dos que percorrem os caminhos tortuosos dos matos nas noites de luar cheio.
Quando se sentiram saciados, lambuzados do mel e da água viscosa que brevemente os unira na perdição, ficou como marca do diálogo que os corpos mantiveram, a brusca revoada das perdizes assustadas com o lancinante grito de dor do conhecimento que ganhara.
O sangue virginal no capim não foi chorado nem cantado pelas mulheres, como deveria, em afirmações honrosas.  O último pingo da seiva amorosa que escorrera envergonhado das carnes já marcadas pela maldição, teimosamente agarrou-se à pequena espiga dobrada, até que a  hiena sequiosa o lambeu em gargalhada esdrúxula do pôr do sol.
Nunca mais se falaram, quase nunca mais se olharam, mas nos momentos inseparáveis em que ambos sonhavam com as águas do rio transbordando raivoso pelas margens, nesses momentos, como que por acção fatídica, encontravam-se para o amor, para a troca de fluidos, sempre sob a vigilância acesa dos olhares albinos dos que nunca adormecem, dos que vivem com os caranguejos doces.
Aos dezassete anos engravidou. Pérola lançada no chiqueiro.
O tio, em fuga para terras longínquas e inacessíveis, lugares inenarráveis, ninguém mais dele soube.
“Acusa o padre da missão, já tem dois filhos.”, recomendou-lhe ainda.
Aos dezassete anos engravidou minutos quando foi derrubada a árvore ainda verdejante dos sonhos.
“Acusa o padre da missão, não sejas parva.”
Engravidou horas, dias, semanas, até o aterrador compasso do tempo não permitir mais aquele esconder do inevitavelmente inescondível.
Engravidou desesperos e raivas ancestrais obscuras que desconhecia.
Das mãos paternas, medrou chicotes cavalomarinhados em sulcos ardentes fendidos no corpo tenro, na ira sempre justa e profunda da família secular, e na dança das kiandas injuriadas
Foi fechada, desterrada para o convento das madres carmelitas até ao fim do pernoitar do pecado, para o nascer alvoroso do dragão encarnado, já que a noite não é para ser vista com os olhos do dia.
No parto-morte clamou por vingança no nome daquele que fustigara sua inocência, que saciara seu desejo de virgem-fêmea não conhecedora das regras com que a natureza joga o jogo dos calores e dos suores.
 Pois que a natureza se vingasse.
Gemeu as entranhas até o filho nascer e, ao sustentá-lo brevemente nos braços para lhe inculcar todo o fundo tenebroso de sua alma, cuspiu com o olhar embaciado pela dor a maldição perpétua e autófaga. Só então sentiu a força das lagoas profundas a puxar, feliz e liberta.
Na sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não da febre mas do desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.
A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.
“Que situação ridícula, não posso”.
Todavia os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso do plasma.
Em seguida veio a paz e o ruído meigo das cataratas deslizando sobre as rochas em musgo.
Foi, na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.
Do carcomido ventre da esposa saiu assustado um sardão vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas.
O corpo da mulher exalava todo o perfume e aromas mornos das festas das divindades aquáticas.
Ele, coitado, anunciava feliz aos rostos contritos de ansiedade, que o contemplavam em silêncio, que o filho finalmente nascera.
Agora que o desculpassem, teria que ir buscar mel ás colmeias e leite ás tetas das cabras para o alimentar.

domingo, 2 de dezembro de 2018



CARTAS

Minha Genoveva, 
Senta-te para que não caias de surpresa, já que é a primeira vez que nos falamos e poder-te-á ser, ou não, agradável o que vou contar. Quando o meu bisavô foi para as Áfricas, já lá vão precisamente 98 anos, certamente ninguém pensou na sua aldeia que voltasse, mas foi o que fez, como talvez saibas. Deixou aí filhos com uma lavadeira negra, um deles o teu avô, de nome Miguel Gomes, só isso é que sei. Parece que vivia em Benguela e o teu pai ou a tua mãe, cujos nomes não conheço, se ainda forem vivos, por certo saberão confirmar o que digo. Sou, pois, tua prima afastada, sendo o nosso bisavô o mesmo, já que ele aqui tornou a fazer filhos, tendo-se casado com a minha bisavó, D. Engrácia Gomes. Fiquei muito feliz quando recebi do consulado português em Luanda a indagação se por acaso um tal José Armando Gomes seria aquele que estiveram em Angola de 1900 a 1930 e cujo assento de baptismo de um filho, Miguel Gomes, constava na paróquia do Carmo, em Luanda. Acho que terás sido tu a inquirir, pois foi esse o endereço que me foi fornecido. O resto, é este primeiro contacto. Manda-nos fotografias tuas e da família, explicando tudo muito bem, quem são e como estão. O retrato que anexo é do Augusto, meu marido, eu e o nosso filho Tobias, tirado no jardim zoológico o ano passado, quando fomos a Lisboa de férias. Por acaso tirada ao lado dos elefantes, quando não sabíamos que tínhamos parentes em África, vê lá. Tua prima que te adorará conhecer um dia. Ana Rita P.S. Que cor és?... 
Mário Maldonado ao chegar a casa, encontrou a carta aberta em cima da mesa na sala de jantar. Certamente que a mulher aí a tinha deixado para que ele a lesse. Momentos depois, quando esta saiu do quarto, jocoso, perguntou, à guisa de cumprimento: “Então foste descobrir uns pulas teus parentes na meloi?” De facto assim fora. Genoveva descobrira uns documentos guardados em um embrulho de papel castanho meio comido pelas traças, numa mala com coisas que tinham pertencido a sua mãe, que davam a entender que talvez pudessem ser de seu familiares. Sem dizer nada ao marido, consultara os registos da igreja e contactara o consulado português em Luanda, que se prontificou a averiguar. “Que mal há, são parentes e devemos conhecer as nossas origens.” “Vem mesmo a calhar, para o ano vamos lá passar férias.” “Achas que vão querer ter na terrinha uns pretos como parentes?” “Será por isso que perguntam qual a tua cor?” “Penso que não, deverá ser só curiosidade. Conhecem que o bisavô fez filhos com a lavadeira minha bisavó, portanto pensam que no mínimo mulatos devem existir.” “Lá isso é verdade.” “Envia-lhe umas fotografias e logo verás...” Se a minha mãe estivesse viva, iria ficar bem contente. Ela sempre nos disse que tínhamos sangue de branco.” “Por acaso recordo-me da tua mãe, era negra mas notavam-se-lhe os traços europeus. Mas o que vais fazer?”, perguntou-lhe. Genoveva Maldonado parou para pensar. O lógico seria responder e dar tempo ao tempo. Aguardar que uma amizade se formasse, ou que a curiosidade soçobrasse no mar de esquecimento que a distância produz. Ardia por saber mais daqueles primos distantes, em lonjura e parentesco. Ter tido conhecimento que tinha família para além da conhecida, e em outras partes do mundo, fora uma agradável experiência. Eram raízes dum tronco comum que se revelaram abruptamente, um passado que emergia e a incorporava. 
“Creio que vou-lhes responder e aguardar, nada mais posso fazer. E um dia, quem sabe, talvez me convidem a visitá-los.” “nos convidem!...”, emendou o marido. Com a felicidade da primeira carta, na manhã seguinte respondeu à prima. 
Querida Ana Rita Fiquei muito feliz em receber a tua carta, não só porque foi uma surpresa como igualmente revelou familiares que nunca sonhei ter, não obstante minha mãe me falar de um avô mulato, seu pai, portanto. Meu avô chamou-se em vida Abílio José Gomes e casou-se com uma senhora negra, Celestina. Geraram vários filhos, entre eles a minha mãe, Francisca Gomes, que por sua vez se casou com um outro senhor negro, António Nóbrega da Silva, que me fizeram a mim, esta tua prima Genoveva Silva Maldonado (o último nome por casamento) e mais dois irmãos, todos vivos. Ficas, assim, a saber do ramo africano da família gerada por nosso bisavô, pelo menos do meu lado. Estou um pouco atrapalhada por não te conhecer e portanto, não saber o que te dizer. Quanto ao nosso país, certamente sabes de tudo, ou quase. Há anos que nos guerreamos e destruímos, sobretudo por causa de um doido que teve que nascer nesta nossa terra maravilhosa, para mal de todos nós. Quando desejares vir até Angola, tens aqui casa. Por ora é tudo. A fotografia é minha, com o meu marido. Não é muito recente mas ainda estamos assim, talvez um pouco mais magros. Tua prima. Escreve! Genoveva 
Dois meses passaram e Genoveva nada mais ouviu de Ana Rita, facto aproveitado pelo marido para a espicaçar. 
“Eu bem te dizia, logo que souberam que havia negros na família...”  
“Pode ser, mas duvido. Sabiam que os havia, pelo menos a bisavó.” 
“Certo, mas a confirmação de uma hipótese mudou tudo. Olha, o teu avô poderia ter casado com uma branca ou mulata.” 
“O que interessa tudo isso?” Ana Rita dirigiu-se à varanda para estender a roupa lavada da véspera. À noite houvera luz, as sagradas oito horas distribuídas ao bairro. Esta manhã tê-la-iam até ao meio dia e, depois, tornaria a voltar a partir da meia noite. A campainha da porta soou e Mário abriu. Era o carteiro a entregar a correspondência, entre a qual, uma cartas de Portugal. 
“Véva, gritou ele para a varanda. “Tens aqui uma carta da tua prima portuguesa!” 
Genoveva veio a correr e não conseguiu conter a excitação. Quase arrancou a carta da mão do marido e, nervosa, abriu o envelope. Sentou-se na cadeira e leu alto. 
Genoveva minha querida, Recebi a tua carta que muito me alegrou, foi uma sensação cá em casa. O Augusto, que sempre foi do PCP e nunca esteve em África, ficou radiante. Claro que isso serviu para mais um sermão sobre o passado colonial-fascismo e o apoio dos capitalistas do PSD às tendências neocoloniais em Angola, etc., etc. 
Eu também sou do PCP, mas às vezes o Augusto chateia-me com as conversas dele. Se não é o partido, então é o Benfica. Já todo o bairro sabe que temos família em África, angolanos genuínos, como ele repete por tudo quanto é canto. Foi muito gentil da vossa parte porem a casa à nossa disposição, quem sabe se um dia não teremos essa alegria de aí ir, embora duvide muito. Não temos posses e a viagem custa bastante. Segundo consta aqui em Portugal, vocês é que são um país muito rico e há por aí um monte de carros novos, dizem que todos têm um e que os angolanos viajam muito. Alguém contou-nos que em vez de dentes de ouro, vocês usam dentes de diamantes e que o petróleo até escorre nos bairros de Luanda. Se isso for verdade, então certamente será muito mais fácil vocês virem cá. A nossa casa é pequena, mas sempre se arranja um espaço. O Augusto pede-me para te perguntar que regime político têm agora? Sabíamos que eram comunistas, porque o Dr. Agostinho Neto foi retirado da cadeia pelo nosso Partido. Mas desde a nova situação mundial, diz-se por aqui que são cristão democratas. Ele jura a pés juntos que isso é mentira, nunca fariam uma coisa dessas, sim senhor que poderiam ter mudado mas não tanto assim, já que fizeram uma luta de libertação nacional contra um sistema que oprimia as massas. 
E aí há o Benfica? Também para o que está a jogar, se não houver não faz falta nenhuma! Desculpa lá, mas nas minhas cartas irás sempre encontrar um pouco de política e futebol. Talvez tenhas orgulho em saber que esse nosso bisavô foi um garanhão, pois com a minha bisavó, fez ainda cinco filhos. Por hoje é tudo. Cumprimentos ao Mário. Tua Ana Rita 
“Com que então angolanos genuínos, heim?”, riu Mário Maldonado. 
 “Mal sabem eles o que isso aqui quer dizer!...”, riu Genoveva igualmente. 
“Agora que descobriste esses parentes brancos lá se foi a tua genuinidade, passas a ser extra angolana...”, provocou-a. 
“Muito me preocupa! Olha para o Hitler e os seus genuínos. Isso são teses de atrasados mentais, mentecaptos.” 
“Eh lá!... O problema não é teu, não vale a pena exaltares-te.” 
 “Já sabes que me aborreces quando me provocas com esse tipo de argumento.” 
“Tá bom, tá bom, não vale a pena guerrearmo-nos por causa disso.” 
“E que tal essa de sermos cristãos-democratas?”... riu Mário. 
“Eu cá disso não quero saber, já me bastaram os anos do PT, embora, em abono da verdade, estivéssemos muito melhor do que agora.”, respondeu a esposa. 
“Cinco filhos, é?!... faço ideia a cambada de primos que por lá deves ter, alguns até talvez aqui sem ninguém saber.” 
“E se lhe mandássemos um PTA para ela vir’” 
Dias após, escreveu à prima. 
Querida Ana Rita, Sou novamente a agradecer-te a carta recebida há tempos. É sempre uma alegria ter notícias tuas e dos teus. Nós bem graças a Deus. Então vocês são comunas? Eu e o meu marido não somos nada, na época do partido único tínhamos que ser do MPLA, votamos nele e no presidente, mas hoje, se queres que te seja franca, não somos nada, incluso duvido muito que nos próximos vinte anos tenhamos eleições. Tudo aqui vai de mal a pior, cada vez mais pobreza, não é nada aquela riqueza que por aí se fala, isso é para muito poucos. Dentes de diamante?!... A miséria aumenta a olhos vistos e, por consequência, a criminalidade, a prostituição infantil, os deslocados, os mutilados, enfim, um horror de nunca mais acabar, para além desse criminoso que não para de fazer a guerra porque sonhou ser presidente a todo o custo. Puxa, e não há quem acabe com essa peste! Quanto ao sermos cristãos democratas, olha, estou fora da política, só sei que houve mudanças quando a União Soviética faleceu, mas os que lá estavam antes continuam a ser quase todos os mesmos. Julga por ti própria, não me quero aborrecer com essas coisas, até porque tenho um projecto que está quase a arrancar, à custa de muitos anos de sacrifícios e negócios. Podes falar de política e futebol à vontade, ambos são jogados muito com os pés e pouco com a cabeça. Eu e o Mário vamos abrir um pequeno restaurante na Ilha. A Ilha de Cabo é uma extensa língua de areia ligada ao continente por uma ponte, e um ponto de turismo e recreação luandense. Será um restaurante especializado em pratos típicos angolanos e, talvez mais tarde, em de outros países africanos. Estamos seriamente a pensar em convidar-te a vires passar uma temporada connosco, infelizmente falta-nos o kitadi (dinheiro) para vos convidar aos dois, mas talvez só lá para o fim do ano. Depois confirmamos, mas vai-te preparando psicologicamente, isto aqui é muito quente, com mosquitos e moscas mil... Quanto ao Benfica, em Angola não existe mas muita gente continua a ser dele, por incrível que te possa parecer. Até o meu marido! Tua Genoveva. 
Quando Mário Maldonado regressou a casa para o almoço, encontrou a mulher em pratos e rodeada de umas tantras vizinhas. Ao vê-lo, desatou aos gritos. 
“Meu Deus, quem morreu?”, inquiriu apavorado. 
“Calma vizinho, ninguém morreu.”, tranquilizou-o uma das mulheres presentes. 
Mais aliviado, suspirou fundo e recompôs-se, já com Genoveva agarrada a ele aos soluços. “Assaltaram-me e roubaram-me o carro.” 
“Acalma-te filha. O carro recupera-se, o principal é que não te aconteceu nada.” 
“Dois homens, um com uma pistola. Nunca tive tanto medo na minha vida.” 
“Já deste participação à polícia?” 
“Deves estar a brincar, felizmente que o Antunes passou e deu-me boleia para casa.” 
“Então compõe-te para lá irmos.” 
Foram à polícia e deram participação do roubo, sem grandes esperanças na recuperação da viatura. Três semanas após este incidente, Genoveva recebeu nova carta da prima.  
Querida Genoveva 
Espero que não estejas a brincar quando dizes que me convidam a ir a Angola. Quase que morri de emoção, porque, salvo uma muito breve ida a Espanha, numa excursão do Partido, não conheço mais país nenhum. Esse acontecimento, a ter lugar, certamente que será o maior da minha vida e relembrado para sempre. 
Olha, o idiota do Augusto agora só diz kitadi em vez de dinheiro. Fartaram-se de rir, chamando-o de parvo, porque esse kitadi não vale nada. É verdade? Disseram.lhe que vocês são todos milionários, porque nada se compra com uma nota de um milhão. Claro que não acreditei, como se isso fosse possível! Qual é o país que tem notas de um milhão? 
Ficámos muito felizes por saber que vão abrir um restaurante de pratos típicos do vosso país. Nós nunca comemos nada de Angola. Será que dá para mandares uma receita de um prato que se possa fazer com facilidade? Nada dos muito complicados, tá? 
Então deixaram de ser comunistas e dizes que não sabes o que são? Francamente, não entendo nada! No nosso PCP a única coisa que mudou foi o camarada Álvaro Cunhal por ter que se reformar, temos agora o camarada Carlos Carvalhas, mas o Partido continua a ser o mesmo, a nossa bandeira continua a ser a foice e o martelo e a ser vermelha, os nossos estatutos e objectivos os de sempre. Mas enfim, o mundo muda e esse assunto é vosso. 
Hoje estou fraca de notícias, por isso fico por aqui. 
Tua, como sempre, Ana Rita 
O tempo passou e Genoveva foi-se habituando ao facto de não mais ter viatura. Descria que alguma vez a recuperasse, ou se tal acontecesse, certamente que metade das peças teriam sido roubadas. O marido prometera que em breve comprariam outra, em segunda mão. Quanto mais velha, menos probabilidades de ser roubadas. 
O fosso da distância que separava as primas foi encurtando com a troca consistente de correspondência, iam-se conhecendo aos poucos. Na última, Ana Rita solicitava mais uma vez que Genoveva lhe enviasse uma receita de um prato angolano. Esta nunca lhe falara do roubo do carro, não desejara projectar essa imagem do país, onde se roubam carros à mão armada como quem troca de camisa. 
Querida prima, 
Há algum tempo que não te escrevo, são preocupações da nossa vida que o impediram, mas nada de sério. Estou em falta para contigo, de facto já deveria terte enviado a receita de um prato nosso, se queres que te diga, nem sei de quê. Como aí é fácil adquirir carapau, vou-te ensinar um prato típico luandense. É o mufete, que às vezes comemos com feijão de óleo de palma, outras com pirão. Arranja uns carapaus, segundo o número de pessoas, e farinha de mandioca torrada. Aí talvez encontres a brasileira, mais fina e de menor qualidade que a nossa. A essa farinha, nós chamamos farinha musseque, sendo o musseque a terra batida e encarnada africana. Foi nessas terras, portanto não asfaltadas, que a colonização criou os bairros periféricos dos negros, e daí esses bairros passaram a chamar-se, por extensão, musseques (este parêntesis é para o Augusto). 
Também precisarás de cebola, tomate, azeite doce, vinagre, gindungo (piripiri), sal e água. Lava o peixe e coloca-o a secar, sem ser escamado ou retiradas as vísceras (faço ideia da cara que deves estar a fazer, mas acredita que dá melhor gosto). Deves assá-lo em poucas brasas, para ser lento e sem ser queimado. Vais voltando os lados a fim de que fique assado homogeneamente. Quando estiver pronto retira das brasas e serve quente, colocando só então o sal. Faz acompanhar com pirão, bastante fácil de preparar. Enquanto o peixe é assado, pica a cebola e coloca-a numa tigela com os outros ingredientes, salvo a farinha musseque, que é adicionada aos poucos e com cuidado para que não fique molhada, mas sim leve e solta. Bom apetite. Espero que te saia bem a experiência, se não gostares, não desanimes. 
Para tua informação, já que aí em casa se deve ter passado a mesma coisa, o meu marido teve um ataque de nervos quando Benfica perdeu com o farense, o lanterna vermelha do vosso campeonato. Essa noite não dormiu e acredita que isso não entendo. Primeiro, porque não ligo nenhuma a futebol, segundo, porque não entendo como é que alguém pode sofrer por um clube que nem é da terra dele, mas como se diz, cada maluco com a sua mania. Eu que aguente. 
Tua prima que muito te preza. Genoveva 
O dia amanhecera solarento mas abafado e a ameaçar chuva. Genoveva encontrava-se em casa quando o carteiro trouxe a correspondência, uma única carta, com o carimbo de Luanda. Sentou-se à mesa, sorveu o chá que tomava e, com a faca, abriu o subscrito. Retirou a carta e leu, no fim largando uma grande gargalhada. Partiu a correr para o telefone. 
“És tu, Maldonado? Não acreditarás no que te vou contar!...” 
“O que foi?” 
“Vou ler-te uma carta que recebemos esta manhã.” 
“Outra carta da Ana Rita?” 
“Não, dá bem atenção.” 
“Diz lá...” 
“Vou ler!...Meus caros, sou muito vosso amigo e por gostar muito de vocês é que vos tirei o carro, porque se vos pedisse, não nos dariam.” 
“Estás a brincar!...”, cortou o marido. 
“Deixa-me acabar. Arranjei a avaria no disco de embraiagem e meti novos faróis. O carro encontra-se neste momento à frente da escola Nzinga Mbandi.” 
“Certamente que é brincadeira, já lá foste?” 
“Claro que não.”
“Estou a caminho, prepara-te.” 
“Aguenta aí, isso não é tudo. Diz ainda: quero desculpar-me de todos os problemas e do susto que vos preguei, por isso, no dia 23 convido-vos a jantar comigo, às 20.30, no Ponto Final, onde desejo redimir-me do pecado, contando com o vosso sentido de humor.” 
Feliz ficou o casal ao chegar à escola Nzinga Mbandi e ver estacionado o seu carro. Genoveva, que o conduzia no regresso, verificou que de facto a embraiagem estava reparada, para além dos novos faróis. Nessa noite caprichou no jantar, até velas colocou na mesa e um arranjo floral. 
“Quem será o engraçado, ou os engraçados?”, perguntou Maldonado. 
“Passei o dia inteiro a pensar nisso... nossos amigos ou conhecidos, terão que ser.”, disse Genoveva. “De qualquer dos modos, mesmo com as reparações, é uma partida de mau gosto...” 
“Hoje são dezoito, não é? No dia 23 logo saberemos quem são, e então veremos o que faremos.” 
“E vamos mesmo ao tal jantar?”, quis saber Maldonado. 
“E porque não?”, respondeu Genoveva. 
E ao jantar foram. Chegaram quinze minutos mais tarde para não parecer mal e esperavam há meia hora, quando mandaram chamar o gerente. Apareceu o dono do restaurante e confirmou que sim, um senhor havia reservado por telefone aquela mesa para eles, eram o casal Maldonado, não eram?, e que caso se atrasasse lhes oferecesse uma garrafa de champanhe pelo incómodo da espera, mas que vinha certamente. 
Às dez horas decidiram ir-se embora, com um problema dos diabos, pois o restaurante queria saber quem iria cobrir a garrafa de champanhe bebida. Por fim chegaram a um acordo, em que Maldonado prontificou-se a pagar meia garrafa, pois, segundo o dono, quem sabe se aquilo não era uma tramóia para lhe mamarem uma garrafa de champanhe, sendo cúmplices de quem telefonara? 
Ao longo do caminho, mal falaram e todas as dúvidas que tinham sobre o brincalhão se esvaeceram. Se o apanhassem, fariam dele carne picada. 
Subiram em silêncio e quando Genoveva abriu a porta do apartamento e olhou para dentro, caiu desmaiada. Nem uma carpete restara! O apartamento tinha sido esvaziado de tudo que continha, excepto a papelada que jazia amontoada no chão. Maldonado olhou à volta, descrente, e deixou os olhos pousar no amontoado de papéis, no cimo do qual jazia uma carta aberta. 
“Querida Genoveva, 
Espero que não estejas a brincar quando dizes que me convidam a ir a Angola.”, começou, distraído, a ler.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

O SENHOR DAS ÁGUAS

EXCERTO DO MEU PRÓXIMO LIVRO A SAIR BREVEMENTE E PUBLICADO PELA LEYA/TEXTO EDITORES


PRIMEIRO ANDAMENTO
A AURORA
Allegro

O fascínio pelo mar, essa vastidão sem fim ora verde ora azul, às vezes negro, aprisiona-me, irreverente, no afago das lendas eternas que lhe são particulares e locais umas, mundanas outras.
Arrasta-me no sulcar de suas águas, como casca de noz a bolinar ao sabor dos ventos mansos.
Compele-me a um longo caminhar sobre ele até ao infindo, não como timidamente fez o Sábio num lago.
Impele-me pelo verde azul que o tinge, resguarda-me na negrura profunda e tenebrosa dos abismos que oculta.
O mar é o bem-querer do luar ondulante e perene do astro fêmea que jamais o repudia.
E quanto mais me sinto ligado a ele, mais surpreendente acho esse fascínio. Será porque o meu umbigo foi enterrado, em cerimónia assombrosa, tão longe dessa imensidão? Por pertencer a terras distantes, de florestas verdejantes onde nunca se ouviu o seu canto, o seu murmurar manso ou o seu rugir furioso e não se conhece suas entranhas prenhe de vida e mistério?
Porém descubro não ser surpreendente, o termo certo para expressar esse fascínio. Não existirá uma outra palavra que revele ou destape esse sentimento, essa incerteza? Não creio que seja uma dúvida filosófica, não sinto uma necessidade premente de encontrar uma explicação racional, não é uma dúvida existencial. Talvez porque não encontre resposta única, vêm-me à mente dezenas de outras palavras que teriam o mesmo fim e, deste modo, resta-me o conselho de Pitágoras: em estado de dúvida, suspende o juízo.
Não o suspendi, antes pelo contrário, vasculhei minha mente por outra e, ao fim de uns dias, acabei por encontrar a palavra que desejava, de uma maneira singular e até caricata.
Uma noite meio chuvosa, até certo ponto encantadora, fui levado por dois jovens poetas para um espaço cultural no Cazenga. Dessa noite, entre muitas sensações e pasmo, evoco a corrida desgarrada das sombras elásticas das ventoinhas no tecto pelas paredes pardacentas do recinto.
Recordo, ainda, apalpar a música com olhos de viandante atento e por qualquer razão, sentir-me a pisar o mato dos cafezais que de criança me cingiram no perfume indelével do seu florir, pegadas deixadas a que me agarro no meio da dissonância do local, talvez por não me sentir à vontade.
Num palco improvisado, vários bardos espalham, por turnos, em voz de elevada ressonância, poética de sua lavra. Numa mesa cerca, os filósofos da praça em cavaqueira acalorada sobre o sentido da vida e  mais afastada, junto ao bar, ponto estratégico para sua voz roufenha, uma cantora de jazz duvidoso.
Imprevistamente, nas asas de um morcego que se dependurada de uma das vigas, surge-me a palavra substituta de surpreendente, que a esmo procurava. Devia ser um habitué da casa, pois notei meio surpreso que ninguém reparava. Voou à volta várias vezes em bailado sinuoso e foi pendurar-se no mesmo sítio, talvez à espera que a plateia o aplaudisse, agradecida.
Esquisito, é a palavra que me foi desenhada no espaço pelo bailado alado do orelhudo, como se tivesse propositadamente sido escrita para mim e muito mais sentido achei ela ter, quando por acaso meus olhos pousaram, em espanto, na frase escarrapachada em letras garatujadas na parede atrás do bar.

EM ESTADO DE DÚVIDA, SUSPENDE O JUÍZO.
Man Verdades, o Sócrates do Cazenga.

Sem qualquer réstia de incerteza, agarrei-me freneticamente a esquisito, por saber que a frase não pertencia a esse filósofo mas sim a Pitágoras e também por que ciente da fragilidade das palavras, da sua capacidade intrínseca de gerar conflictos, de significarem o que cada um deseja ou não. Esquisito, para o médico nada tem a ver com o esquisito ao meu reclamar, no alfaiate, de uma manga ligeiramente mais curta do que a outra no fato que me confeccionou.

O MEU BLOGUE ANTIGO, BEM ANTIGO, COM ESSAS MUDANÇAS TODAS NO BLOGGER DESAPARECEU, INFELIZMENTE. ANOS E ANOS DE TRABALHO VOOU.

Começo por desejar a todos/as futuros/as leitores/as umas Festas Felizes