segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

A PRECE DOS MAL AMADOS



CAPÍTULO I


A imaginação foi sempre
O húmus do jardim de Clio.

(Alberto da Costa e Silva)


     O céu escureceu rapidamente coberto por extensas nuvens negras e as copas das árvores vergaram-se, ondulantes, às danças macabras do vendaval. Aos pios das aves foragidas que nelas procuraram refúgio e abrigo, juntou-se o detonar seco e metálico do primeiro trovão, que ribombou transformado eco sinuoso em cavalgada desabrigada pela lonjura do infindo.
     Nas ruelas da aldeia correu gente aos gritos, mães assustadas em busca dos bedelhos desgarrados. Afoitos, os homens guardaram nas choças pertences vários como puderam, enquanto os mais jovens pularam ruidosos, encantados pelo aguaceiro que sobre eles principiara a tombar, no velho ritual das cabriolas de alegria e dos gritos de prazer ao ameno flagelar da água sobre seus corpos luzidios.
     Na cabana principal, sentado numa cadeira de madeira avermelhada, meio escurecida pelos fogos do braseiro, Juba de Leão, o soba grande, sorriu melancólico e cuspiu o tédio para o chão de terra batida, após as baforadas que tirou à mutopa quase apagada, em serena apreciação do fumo a invadir-lhe o peito, num calor antigo e familiar. Agarrou na cabaça da cerveja de milho, levou-a lentamente aos lábios e sorveu até se sentir satisfeito. Pela porta entreaberta percebeu as bátegas da chuva, que lhe pareceram minúsculas flechas de ferro a entranharem-se pelo solo com gritos prenhes de exultação. Anestesiado pela bebida e pelo odor penetrante  da terra molhada, suas pálpebras baixaram sobre o mundo que o rodeava e tombou adormecido, a cabeça a pender sobre o peito, enrugado como casca de embondeiro carcomido pelo tempo.
     Teria nascido no início do século, não sabia ao certo o ano, agora que se tornara ancião dera para falar muito de campanhas de grandes reis contra os brancos. Lembranças onde as lendas se fundiam nos factos e nos mitos, remando entre raios, trovões, cataclismos, transfigurações, metamorfoses e aparições inopinadas que levaram o branco que procedia à ocupação militar das terras, a perseguir exércitos de guerreiros invisíveis, imunizados contra o trovejar da sua artilharia. Desiludido, prisioneiro do poder da tradição, das suas leis e regras, incapaz de vencer a barreira do tempo, sentindo-se responsabilizado pelos desaires dos antepassados, das guerras perdidas, das rendições incondicionais, da subjugação abjecta à arrogância forânea, resmungava que nunca se extirparia por completo a erva daninha do bojo da boa, haveriam de medrar sempre juntas como irmãs gémeas, já vira muitas luas ir e vir, mais do que as estrelas que existiam nos céus, ele bem sabia. E quando as crianças o ouviam, abriam as bocas em espanto e descrédito.
     Mais luas do que as estrelas que há nos céus? O nosso rei é poderoso!
   Da cabeça pendida, a baba escoava-lhe peito abaixo. Em estupor, o corpo sacolejava ocasionalmente e a mão esquerda afastava, pelos gestos que desenhava no ar, sombras invisíveis, fantasmas e receios ancestrais que o açoitavam desde que apareceu o sonho repetitivo e desvairado, no qual uma serpente inimaginável, lançava sobre ele línguas bifurcadas que sibilavam de duas cabeças, macho e fêmea, os netos abandonados, desterrados por sua ordem, filhos de um dos que viera do mar, e com o qual havia estabelecido pactos de conveniência, solidificados pelo sangue.
     É que tão cedo a hora da independência se vislumbrara, com o anúncio do fim da dominação colonial através dos acordos assinados, mandou espalhar pelas aldeias até onde o seu poder se estendia, que os mulatos teriam que ser entregues ao pai, e as mães que com eles quisessem ir que partissem.
     - Quem nos trouxe essa gente aqui? – alvitrou, pelos ventos quando percebeu sobre si olhares duvidosos, interrogadores – Vieram de longe, não fomos nós que os chamamos, quem fez filho com eles pode ir.
     No recôndito da noite, no catre, a Consciência ainda lhe gritou, ténue, abafada, sabendo não haver justiça, peso e medida no decreto, só despeito e rancor.
     Mas não foram os filhos, foram os pais ou os avós, os filhos  já são nossos!
    Achou que chegara a hora de revidar o mal e humilhações sofridas através dos séculos, quem chega e desrespeita as leis que encontrou, quem rouba para além do que lhe foi dado, não merece consideração porque fez-se estranho perante os que os acolheram no regaço dos hábitos e costumes.
     Rapidamente a Emoção investiu, velho ele estaria, mas ainda lúcido.
     É o mesmo! O filho sempre defende o pai, não deixa que te enganem mais uma vez, saíram todos do mesmo ovo.
     Em desespero de causa, agarrada a uma esperança que acreditava poder manter à tona,  a Voz da Razão não se deu por vencida
     Mas o ovo, quem o põe? Sai do pai ou sai da mãe?
     O Coração, marcado pelo açoites da memória não se condoeu, não poderia haver espaços para filosofar.  
     Não interessa, não interessa.
     Sorriu. Sobrevindo entre os argumentos das duas, e surpreso com os argumentos e contra argumentos, indagou-se se alguma vez e de igual modo os que lhe roubaram o poder também teriam sofrido das mesmas culpas.
     Juba de Leão revestiu-se assim da capa dos justiceiros e decretou a lei a ser seguida, dente por dente olho por olho, sem sequer pensar que o seu sangue escarlate fluía igualmente vermelho nos netos mulatos, livre, ameaçador e independente como a independência que chegaria em breve para tudo levar em frente num cataclismo de formas anunciadas e imprevisíveis.
     Não se sentiu ameaçado perante o desrespeito à tradição, pelo que conhecera dos brancos tinha a certeza que nunca invocariam antepassados para se vingarem do gesto de arrogância, da quebra dos valores próprios. Jamais os ouvira ou vira fazê-lo. Os brancos quando oravam ou imploravam aos do sangue era aos vivos a quem endereçavam os medos e as angústias. Mas em caso que consultassem seus mortos, sabia que os mesmos estariam  afastados muito para além das montanhas e das florestas que delimitavam a sua regedoria, para além dos mares infindáveis que ouvira falar, muito longe da possibilidade de lhe nublarem a mente e a tranquilidade, seus reinos e leis sendo de outras naturezas.
     - Os filhos da cobra têm que ir, as mães que os entreguem ao pai. – ditou.
     E agora que os antepassados lhe anunciavam a neta esquecida, Nazamba, amedrontava-se. Incomodado, tentava ofuscar a memória de Balanta, a filha, a percorrer as vias poeirentas da aldeia, feita louca, atirando punhados de areia para o ar.
     - Entregar a minha filha no pai? Não é ela dos nossos, não pagaram o meu dote, o soba grande não recebeu tudo o que pediu, não enterrei o umbigo deles na terra dos avós?
     O povo, calado, evitava comentar, nem um muxoxo, embora nos olhos de muitos se visse o desaprovo e a compaixão, não era deles proceder de tal modo, mas não se sabia o que sonhara ou quem consultara Juba de Leão.  Tantas coisas a acontecer e de maneira tão veloz que lhes ultrapassavam o entendimento e a aceitação, quem sabe se o branco não voltaria com mais força ainda, não seria a primeira vez, e quem lhes confirmava que efectivamente tinham partido? E se assim viesse a acontecer, para eles, que nunca tinham sido governados por um negro igual, como iria ser? Muitas eram as perguntas, as grandes fazendas iam voltar às suas mãos, as casas quem ia ficar com elas, os carros, os médicos quase todos brancos, quem os ia substituir? E os pretos que tinham feito mal aos seus iguais, o que lhes ia acontecer, agora sem patrões a controlá-los ou a dominá-los, para onde se viraria sua raiva, como se estava a virar a raiva do soba grande contra a própria família, o mesmo sangue?
     Muitos se condoeram com Balanta, a filha preferida, da terceira esposa que, para aceder ao capricho e ambição  dele casou com o homem vindo dos mares, recebida ainda virgem, com quinze anos.
     - Levem os mulatos, levem, esses não são da terra.
     Não mais recordava a partida do genro, levado para Luanda pelas autoridades coloniais e colocado num avião com destino a Lisboa, temeroso e desnorteado pelo que acontecia em Portugal e em Angola.
     Como lhe apareciam agora os espíritos da culpa a não o deixarem dormir em paz, a desenterrarem memórias hereges que pincelavam num quadro que desejava não ter existido, o momento em que Marcelo, magro e bigodudo,  arribara um dia à aldeia, pleno de evasivas?
     O comerciante, nas suas andanças pela região observara um dia a jovem Balanta e pensou que chegara o momento de resolver a questão da solidão.
     Uma preta assim é o que me faz falta!
     Homem branco sozinho naqueles matos cheios de febres não era aconselhável, o último paludismo que o apanhara quase lhe levara a vida, felizmente que carregava sempre consigo um frasco de quinino. Chamou o empregado mais chegado, aquele que lhe servia de um faz tudo e indagou quem era a rapariga. Ficou agradado ao ser  informado que era a filha do soba grande.
     Ainda bem, mato dois pássaros de uma só pedrada!
     - O que é preciso então fazer? – quis saber.
     - O patrão tem que falar com o pai dela, mas é melhor mandar um familiar seu. Se o soba grande aceitar, tem então que falar com ela, a filha.
     - Familiar meu, não sabes que estou sozinho?!... – retorquiu irritado.
     - Então arranja alguém de sua confiança, posso ser eu. Vou lá e falo com o soba grande, explico tudo e se ele aceitar, o patrão vai depois falar com a menina para ver como vão andar as coisas do lado dela.
     Até aí tudo bem, mas mandar lá este gajo a falar por mim é que não estou nada de acordo, acaba por dizer o que não deve e lixa-me.     
     - E depois, o que tenho que fazer depois?
     - Se ela aceitar, tem que dar uma prenda de dinheiro ou um cabrito, ou panos para mostrar que é mesmo de verdade e que o assunto é sério. Aí,  fica já quase família.
     - Tudo isso, tenho que fazer mesmo isso, não chega só pedir a mão e pagar o que pedirem?
     - Dessa maneira fica mal.
     - Fica mal porquê?
     - Nosso hábito...
     - Mas vai já avisando o soba que eu não vou fazer esse casamento com todos as vossas manias, vai ser casamento de branco, não vou andar aí a pôr esteira no chão, come isto hoje, bebe aquilo amanhã e não sei o que mais. Dou o dinheiro e vocês façam lá os vossos ritos e batuques longe da minha casa. E não quero saber de mais coisas, tudo que tiver que dar vou dar de uma só vez, ouviste ?, que a família fique bem ciente disso, nada dessas confusões uma semana isto outra semana aquilo, daqui a uns meses não sei mais o quê e transformam-me a casa em kimbo.
     - É melhor fazer logo filho, acaba com todas as falações. – aventurou o empregado.
     - Isso é outra coisa, claro que se estou a casar é para fazer filhos. Vai, vai tratar desse assunto, e nada de falares muito, ouviste? 
     Passou o dia em pulgas.
     O que o raio desse preto estará para lá a pintar? Ainda vai acabar por prometer uma data de coisas de que não lhe falei, ou deitar tudo a estragar!
     Mas assim não foi, o empregado cumpriu com zelo a missão e a resposta foi positiva, o soba sentia-se muito honrado de poder unir as famílias e teriam que falar em data a anunciar, mandá-lo-ia chamar.
     Durante umas duas semanas viveu a angústia natural de todo aquele que aguarda pelo que não sabe quando vem, desmazelando-se nos afazeres, perdendo o gosto pela comida mal preparada pelos criados e nunca a seu gosto, e quando chegou a ocasião de se ir apresentar, quis fazer as coisas à sua maneira não obstante ter sido devidamente instruído para os preliminares e o mínimo de cerimonial a observar.
     Todavia, homem cuja ascendência épica reclamava armas e barões assinalados a partir de uma ocidental praia lusitana, bem como a edificação, entre gente remota, de reino que tanto sublimaram, dispensou os salamaleques nativos exigidos e apresentou-se com uma comitiva e dádivas de impressionar e calar qualquer boca que se opusesse.
     Com uma estrondosa batucada à frente, que se fazia ouvir a muitos quilómetros, anunciou a sua chegada majestosa em tipóia coberta e levada por quatro robustos carregadores. Já não se usava tal meio de transporte há muito, mas sabia  que o gesto inesperado e fora do tempo impressionaria o soba, lembrar-lhe-ia o poder do branco nos tempos anteriores, e cortaria muita conversa que, para ele, seria fiada. Atrás, uma longa fila de carregadores e pastores, cada um portador de uma dádiva.  Depois de descer, mesmo ainda antes de cumprimentar o soba grande e futuro sogro, em voz fanhosa devido à emoção, ordenou que os presentes fossem colocados sobre esteiras já estendidas. Caixas e mais caixas com sal, sabão, sacos de açúcar, molhes de rolos de tabaco seco, panelas, copos, talheres e pratos de esmalte pintados de flores garridas, pipas de vinho tinto, garrafões de aguardente, garrafas de vinho do porto, peças de panos vários para uso de homem e mulher, iguarias e doces diversos. Os pastores, previamente instruídos, edificaram uma pequena cerca para onde remeteram todo o gado, as cabras, os porcos, as galinhas, os patos, enfim, tudo o que ele pensara que levasse o soba e os seus a aceitarem o seu pedido e, mais tarde, toda a região a privilegiar a sua casa comercial que, com a união, acabaria por ser expandida.  De seguida, sem demais protocolos e arroxeado pela aguardente que antes ingerira para ganhar coragem indómita, por mares nunca antes navegados colocou o interprete a dizer o que pretendia. Não obstante o insólito, ou talvez por sua causa e origem, o espectáculo deu resultado e no ano de 1945, combinou-se a data para o casamento, ficando a tradição pré-nupcial a ser cumprida pela noiva, disso não abriram mão, branco ou não, ela teria que cumprir com os ritos a fim de que o matrimónio fosse abençoado e sem impedimentos impostos pela não observância dos costumes. Ainda assim ele apressou o casamento, e durante longos anos o matrimónio foi estéril. Sentiu-se culpado, África era uma terra muito estranha.
     Será que estas crendices são mesmo verdadeiras?
    Para se redimir, sentir uma consciência mais tranquila, ordenou que viessem curandeiros de toda a região que, após longas e onerosas consultas, apontaram invariavelmente a culpa para a mulher, o eterno pecado de Eva. Manteve a fé e foram fazendo os tratamentos que lhes impingiram, nunca se ouvindo de sua boca a exigência do rompimento da união e a devolução do dote, como lhe foi aconselhado fazer e impor. Por fim Balanta engravidou  e Marcelo viu-se no seio e foco de novo conflito de culturas porque no oitavo mês, apareceram a mãe e tias de a exigir que o parto decorresse fora da casa, ao ar livre, caso não estivesse a chover. Tanto se opôs, tanto gesticulou e se enfureceu que, por compromisso, aceitaram fazer o nascimento dentro de casa, na sala principal. Chegado o momento, forçaram-no a sair, nem no quarto ou no quintal conseguiu ficar. A sua presença poderia trazer azares, já chegara a longa gravidez de oito anos, como diziam as mulheres e o que ele não entendia.
     Gravidez de oito anos, estão malucas ou quê?...
     Não o quiseram em casa e nada as demoveu, a sua presença poderia dar aso a que a extracção corresse mal, nunca se poderia ter a certeza dele não ter tido ou mantido relações extra conjugais durante este anos todos. Após o parto, quando julgava ir encontrar a tranquilidade merecida no lar, levantou-se outro vendaval porque foi exigido que a esposa ficasse no leito pelo menos uma semana, e que ele não tentasse impedir porque o amarrariam. Esse era o primeiro filho e mesmo que não se passasse por isso, era vedado à mulher fazer fosse o que fosse, não podendo preparar comida, portanto não podendo mexer no fogo.
     - Porra, já chega, amanhã quero toda a gente lá fora, só fica a mãe dela e umas tias, nada mais, ouviram?
     Claro que ninguém ouviu nem entendeu, aguentou com a casa repleta de mulheres e só não as correu para fora a pontapé, receoso que alguma coisa lhe pudesse acontecer, por não estar ainda completamente familiarizado com aqueles costumes e demandas que achou de estapafúrdias.
     Nunca se sabe o que me poderão fazer, diacho quem me mandou?
     Considerou ser aconselhável ceder, o sogro sempre era o régulo da região e se o mandasse amarrar ou qualquer outra coisa, o que fazer, quem culpar? Não poderia apresentar queixa, sabia que resposta o chefe do posto lhe daria.
     Quem o mandou meter-se com essa gente, não poderia ter mandado vir uma mulher lá da sua terra, agora aguente-se?
     Mas jurou que para os próximos partos, nem que tivesse que levar a mulher para outro sítio, haveria de estar presente um médico ou uma parteira reconhecida. Ao perfazer o terceiro ano, Marcelino, o filho, morreu mordido por uma cobra quando brincava num canto do quintal onde se amontoava a lenha, junto ao bananal. Teve que lutar, não quis consultar adivinho nenhum para saber quem enviara a cobra e porquê, teve mesmo que ser rude e afirmar que não queria meter-se nessas coisas, quem brinca com o fogo sempre se queima, e que se o filho morrera dessa forma, é porque o destino assim escrevera na sua página da vida. Por o morto ser uma criança, não lhe cobraram as exigências devidas, todavia Balanta desapareceu por um mês, regressando muda sobre onde estivera e o que fizera. Marcelo, complacente, intuindo que muita coisa teria que aceitar e tentar compreender, nunca mais falou na questão.
     Seguiu-se Cecília, nome que a todos fazia rir pois ninguém o pronunciava correctamente  a não ser o pai,  ficou conhecida por Xila enquanto viveu. A febre tifóide levou-a. Anos depois, vieram Nazamba, nascida em Dezembro de1962 e, dois anos mais tarde, Tomás, os únicos que medraram com força.
     Sobressaltado, Juba de Leão deu um safanão involuntário na cabaça da cerveja de milho e voltou a dormitar na benévola nuvem de oblívio que a bebida proporcionava. Contra a parede mais cerca, e ao alcance da mão, uma velha bengala de madeira que ostentava no cimo uma cabeça dobrada de cobra, o cabo de rabo de boi e o chapéu emblemático do poder, feito de ráfia. Era o que sobrara de uma vasta memória de poder ao longo de anos infindos, transmitida através da linhagem.
     Um vento tímido penetrou pelas frestas de uma pequena janela, e reavivou as débeis chamas que  iluminaram o interior. Fiapos de fumo esvaíram-se, ténues, pela porta, perdendo-se no cinzento da tarde.
     Acordou pouco depois com a algazarra da criançada na apanha do salalé que gorgolejava pelos buracos da terra húmida e fumegante. Esfregou os olhos para afastar as imagens dos sonhos.  Concentrou sua atenção nos sons que lhe chegavam. Sentiu a falta do fogo a arder, avivou as brasas com a bengala e perscrutou  à volta o lugar onde os ramos secos de madeira e gavinhas amontoavam. Cerrou os olhos a fim de poder discernir a vida lá fora e só então notou que a chuva parara.  Quis levantar-se, todavia o corpo não respondeu. Puxou com a bengala uma brasa acesa, que acabou por agarrar com a mão, e colocou-a na boca da mutopa, reavivando a mistura de tabaco secado e liamba. O calor do fumo penetrou pela garganta e aqueceu-lhe o peito, para se transformar na tosse antiga e seca.
     Sempre gostara da chuva, não só por ser anunciadora de fertilidade e de bonança, como igualmente por confirmar as benesses dos antepassados para com a aldeia e o vastos clãs que há muito comandava. A chuva era a mãe da natureza, era ela que emprenhava a terra e fazia brotar a vida, vira vezes sem fim o milho  e a massambala a crescerem espigados, até às colheitas. Com tristeza, recordou os tempos de antanho do soba grande, seu avô, e mais tarde do soba grande seu tio, em que observara as primeiras colheitas a serem-lhes levadas para que se cumprisse o rito da sua distribuição aos antepassados, e só depois ser permitida a colheita de todo o resto. Ele próprio, Juba de Leão, raramente, para não dizer nunca, executara esse ritual, assim como muitos outros, já perdidos no decorrer das luas imemoráveis.
     Ganhara o nome quando, homem feito e robusto, numa luta que quase lhe levara a vida, matou milagrosamente um leão solitário, ao atravessar-lhe o coração com a azagaia. Seriamente ferido, foi tratado pelos curandeiros da região e por um enfermeiro filho da aldeia que trabalhava no posto administrativo, a dois dias de viagem. Recomposto, sua fama espalhou-se pelas regiões vizinhas, sobretudo quando o chefe do posto, sem se fazer anunciar, apareceu a cavalo para render homenagem ao chefe preto que matara o leão com uma azagaia, conforme ficou nos registos orais do povo.
     Alquebrado, tudo lhe pareceu tão longe e irreverente. Perdera o gosto pela vida e alienava-se no fundo dos sonhos que a mutopa lhe proporcionava, mundo esse em que a mente não era invadida por lembranças bolorentas e humilhantes. Aí, não existiam invasores oriundos do mar que derrotaram seu tio, seu avô e os que lhes precederam. Seres poderosos que lhes roubaram os filhos e mulheres, enviando-os por mares longínquos e estranhos, se apossaram das melhores terras, onde construíram fortes, povoações comerciais, fazendas. Não havia, nesse mundo onírico de fronteiras infindas e amorfas, chefes de posto e administradores para lhe imporem, a ele, Juba de Leão, leis desconhecidas e o forçarem a despachar o seu povo longe, para o trabalho forçado. Não se manifestavam os desenganos da independência que ele vira chegar tarde, e pela qual aguardara com fé e afinco. Aí, onde tudo era calmo e tranquilo, onde nada o perturbava porque etéreo, não se consumia na luta fratricida que lhe destruíra várias vezes grande parte da aldeia, o remetera para exílios vários e, uma vez recuperada a zona, o regresso a um presente nebuloso no qual perdera ainda mais a autoridade e a firmeza das convicções. Não dava conta, nesse mundo diáfano, que não era ele quem mandava, mas sim as diferentes tropas que por lá passavam e que lhe violaram as mulheres e lhe levaram a pouca comida e os mancebos, quando e como bem queriam. Como fizera seu neto Tomás, numa manhã de cacimbo, ainda o dia não nascera, irrompendo violento pela aldeia adentro, a gritar pelo seu nome, só por milagre não o encontrara e raptara.
Quanto partiu, bem antes que as tropas do governo chegassem, pouco da aldeia tinha ficado de pé. Espalhados por todos os cantos, cinzas, corpos de pessoas e animais carbonizados, e o grito reverberado terrível do ódio colado à pele das árvores, embrenhado no visgo que delas gotejava, embebido nas gotas do orvalho e do sangue que escorriam para o mesmo charco lamacento, onde os porcos já chafurdavam.
     Pousou o cachimbo no chão e puxou uma velha corda, com força. Fora, sob o capim do toldo, ouviu-se o badalar roufenho de um pequeno sino. Uma figura masculina pronto se desenhou no pórtico e aguardou.
     - Manda chamar o meu irmão Nehone. - disse, abstracto.
     - Sim, senhor! - respondeu o jovem, retirando-se.
     Nehone era um dos muitos dos seus irmãos e que soubera insinuar-se junto do soba grande. Homem ambicioso, apoiara sem reservas Juba de Leão nas várias quezílias e lutas para a manutenção do poder, gerindo os assuntos correntes como um primeiro ministro. O soba grande concedera-lhe plenos poderes e reservara para si a administração das grandes causas da justiça e da moral, bem como a gestão dos ditames do mundo invisível. Era o juiz e o sacerdote, há muito que se fartara do dia a dia administrativo
     O temporal desabou novamente sobre a aldeia e sentiu-se reconfortado. O que tinha a decidir, teria mais força para medrar com a chuva caindo, auspíciosa. Olhou pela porta aberta e conseguiu perceber apenas o cinzento da água a rolar com violência, batucando surdamente na terra. Uma felicidade, que há muito não experimentava, invadiu-o, fazendo-o sentir-se rejuvenescido e esquecer a neta. Levantou-se com dificuldade para ensaiar em agradecimento uns passos de dança. Trôpego, quase se estatelava, não fosse a mesa tosca em que se apoiou. Com um sorriso de condenação própria, sentou-se e bebeu da cabaça.
     -Pensas que ainda és novo? - disse, em condescendência.
     Na porta soaram umas batidas secas e Nehone foi anunciado.
     - Entra, sai da chuva. - disse o velho soba.
     Nehone entrou, inclinou-se, levou as mãos ao peito e manteve-se calado. Com a bengala, Juba de Leão indicou-lhe um banco para se sentar. Olhou-o longamente e concluiu que Nehone sempre o servira com denodo, nunca o questionara e impusera a lei com firmeza, todavia de forma justa. Já nem se lembrava de que mãe é que ele era filho, tantas esposas tivera seu pai. Tinha ciência de que era um dos seus irmãos mais novos e, erradamente, pensou com idade de ser seu filho. Quando agarrou de novo na mutopa, num faiscar da memória recordou-se que Nehone era filho de Teka, uma das últimas mulheres do seu progenitor. Sorriu e gritou para o servente que certamente estaria na porta, meio abrigado da chuva, para lhe trazer mais uma cabaça de bebida.
     - Esta chuva é boa... - disse, quase falando para si mesmo.
     - É verdade, senhor. Com ela vamos ter boas colheitas. Vai é estragar o trabalho que estávamos a fazer na estrada. - respondeu Nehone, sabendo que havia uma razão para ter sido chamado e que teria que haver toda aquela conversa antes do soba chegar ao assunto principal.
     A estrada que estava a ser construída, era o alargar da picada antiga, que iria permitir o acesso de viaturas de maior porte, para benefício da região. Levara-lhe anos a convencer as autoridades administrativas locais que, por fim, concederam-lhe alguns meios quando se começou a falar de guerrilha e bandidos vindos da Zâmbia. A mão-de-obra era da aldeia principal e Juba de Leão esperava que, depois, a estrada não servisse par fins militares.
     Ao bater de palmas o soba mandou o servente entrar. Este ajoelhou-se, mantendo a cabeça baixa, e colocou a cabaça aos pés do velho, após ter bebido um pouco do conteúdo à frente dos irmãos. Aguardou, por uns instantes.
     - Podes ir, vai para o fogo na tua cubata. - despachou-o, com um sinal da mão.
     Quando o jovem saiu, Juba de Leão colocou a mutopa no chão, agarrou na cabaça bebeu longamente e limpou os lábios com as costas da mão. Em gestos lentos, passou-a a Nehone que o imitou, colocando depois a cabaça aos pés do soba grande. Pela primeira vez, talvez pelas sombras avermelhadas que as acanhadas chamas do fogo lançavam na cara do irmão mais velho, deu-se conta do quão gasto e abatido este se mostrava. Manteve,  de soslaio, o olhar e tentou adivinhar a razão para a qual o velho soba o convocara sob uma chuva torrencial. Se o chamara com tanta pressa e naquele momento, é porque a questão a ser tratada tinha inicialmente a ver com chuva, o aguaceiro despertara uma qualquer emoção ou lembrança, e se tinha a ver com chuva, tinha a ver com vida, com renovação, e não com desgraça ou morte.  Ao dar conta da constatação estremeceu e veio-lhe ao pensamento, como o estampido de um trovão, que fora chamado para tratar de assunto ligado à sucessão, o velho já por duas vezes lhe dera a entender, de maneira bastante sub-reptícia, que havia mudanças a fazer. Agora, media o alcance das afirmações. Sem querer, a sua respiração tornou-se ofegante e o peito arfou involuntariamente.
     Mas o meu coração tem que me trair assim porquê?
     - Que foi? - perguntou-lhe Juba de Leão.
     - Nada, senhor. É a bebida, está boa. - respondeu envergonhado por não se ter controlado.
     Com as emoções a dominá-lo, olhou com gratidão para o irmão, nunca duvidara da sua nobreza e rectidão.
     Quem planta sempre colhe, o velho também sabe disso.
     Chegara a hora de este lhe retribuir os longos anos de lealdade explícita, de admitir que uma mão lava a outra e ambas a cara. Foram décadas de dedicação, às vezes de
negação por nem sempre estar de acordo com esta ou aquela acção que lhe fora incumbida, era pois mais do que justo o reconhecimento de Juba de Leão. Comovido, baixou a cabeça para controlar lágrimas que, empurradas teimosamente do coração, batalhavam para não permanecerem em seu esconderijo.
     Kalunga, ajuda-me então, não me vais fazer fraquejar como uma criança!
     - Esta bebida tem fogo. - disse, a pigarrear, para disfarçar.
     - É verdade, está boa, fermentou bem. Fuma também a mutopa – respondeu Juba de Leão.
     Fumar a mutopa, eu ?... Vai fuma, fuma, não lhe desagrades.
     - Só um pouco...
     Nehone não era afoito nem ao tabaco nem à liamba, mas para não ofender o irmão, agarrou no cachimbo e puxou duas baforadas, que o fizeram tossir, engasgado.
     Juba de Leão olhou para ele e caiu no riso, revelando uma boca falha de dentes. A fragilidade do irmão mais novo perante o fumo espantou-o e, pela primeira vez, deu conta de que nunca antes o vira fumar.
- É verdade, nunca te vi fumar, tinha-me esquecido.
- Não é nada. – disse, quase lacrimejando – Engasguei-me no fumo.
     A chuva amainou e a trovoada deslocou-se para o norte. O céu clareou o suficiente para deixar penetrar na choça a luz mortiça do fim da tarde, mas todos sabiam que durante a noite o aguaceiro desabaria de novo. As aves mantiveram-se recolhidas nas árvores, sem piar, e as galinhas mais atrasadas encaminharam-se para as toscas capoeiras. Percebia-se o ocasional balido de um cabrito, certamente procurando a teta da mãe para a derradeira refeição do dia.
     - Nunca mais tivemos notícias do meu neto Nataniel, já esqueceu a aldeia. - disse Juba de Leão.
     Nehone tranquilizou-se quando viu as suspeitas confirmadas, o velho desejava falar sobre quem lhe sucederia. O que diria ao soba grande quando este lhe informasse que desejava indicá-lo ao conselho, para sucessor?
     O que vou falar? Só agradecer?...
    - Não é nada, vai ver. Os nossos quando vão nas cidades grandes esquecem o que ficou para trás. - respondeu lesto, para o alegrar.
     - Mas mesmo Nataniel, já senhor doutor e general no exército? Esse filho não nos pode esquecer. - respondeu o soba, resvalando para a tristeza.
     Nehone sabia que Nataniel era o neto preferido de Juba de Leão. As autoridades da província, para agradecerem ao velho a lealdade ao governo, enviaram o neto, ainda jovem, para fora, de onde voltara formado em medicina. Pronto o integraram no exército, deram-lhe, algum tempo depois, a patente de major pela dedicação e desempenho nos postos médicos das frentes de batalha. Regressado à capital, foi colocado no Hospital Militar com um futuro promissor por ser trabalhador, competente, e por todos estimado, dado o seu trato afável. Na aldeia, só podia ser tratado por doutor ou general,   já que Juba de Leão não sabia qual a patente que vinha primeiro e não desejava mostrar o seu desconhecimento. General era posto alto, há muito que o reconhecera.
      - Senhor, os afazeres na capital são muitos, e a vida é outra. Nataniel é pessoa importante, mas nunca esqueceu os seus.    
      - É verdade, é um bom filho, mas estou preocupado. Estou velho...
     - Velho, qual quê, ainda aguenta muito bem. – respondeu Nehone
     - Pode ser, pode ser, mas estou cansado, o tempo passa.       
     Nehone sobressaltou-se de novo. Esperou que o velho não tivesse notado, não queria revelar ansiedade. Pressentiu que a conversa estava a ser encaminhada para o anúncio que aguardava.
     Fica calmo, fica calmo, controla-te!...
     Acabara por escurecer por completo e reavivou o fogo. Com os gavetos secos, as chamas elevaram seus bailados serpenteando nas sujas paredes do interior da cubata. Olhou-as fixamente, como que hipnotizado, vendo nelas as frustrações que sentira ao longo da vida, formas desconjuntas, desmembradas numa harmonia de movimentos que mais lhe pareciam o cavalgar desordenado de um rebanho de gazelas, pelas planícies do pensamento.
     - É verdade, o tempo passa. - Nehone não sabia verdadeiramente o que dizer.
     - Estou como aquele leão que matei, só que ele tinha dentes e eu não.
     - Senhor, não diga isso. O leão ainda era forte, nós vimos.
     - Sim, vocês viram, mas quem lutou com ele fui eu. Era já um leão velho, solitário como me sinto agora, qualquer um o vence. - respondeu, completamente invadido pela tristeza que a lembrança e a ausência do neto produziram.
     Calou-se e coçou um pé no outro, talvez recriando a cena da luta, já que um esgar de sorriso permaneceu esboçado nos lábios semiabertos.
     O leão, velho e doente, quiçá cheio de fome porque já não mais caçava, atirara-se a ele, julgando a presa humana mais fácil. Mas mesmo assim, teve sorte em ter saído com vida. Não fora a azagaia que mantinha firme na mão e sobre a qual a fera caíra quando se encontrava derrubado no chão, o que teria sido dele? Deixara que a história ganhasse proporções mais largas porque lhe interessara, conferia-lhe estatura e grandeza. Até o homem branco que mandava, para lhe roubar mais gente para as plantações, viera a cavalo, fingir que lhe rendia homenagem pelo feito. Todavia agora, tudo lhe parecia distante e sem importância. A caricatura de sorriso, murchou por completo nos lábios.
     Nehone desejava compartilhar a tristeza do velho, porém preferiu não se manifestar.       Não conseguia ler-lhe o coração, escolheu não arriscar, o momento era delicado. Manteve-se a olhar timidamente de soslaio, tentando não esfregar a comichão que se instalara nas mãos, para não revelar nervosismo. Sem saber porquê, teve vontade de rir.
     - O meu neto, o nosso filho, tem que vir, a cidade não é boa, estraga os costumes. Olha só na tropa e vê se esses miúdos respeitam mais a gente.
     - Assim é, mas o que podemos fazer? Eles é que fazem a guerra. - respondeu Nehone.
     - Mas Nataniel não.
     - Nataniel é médico, senhor. Ele cura a vida, não a tira.
     - Ficou muitos anos fora, mas é o orgulho nosso. Nunca antes tivemos um filho tão importante.
     - Lembras-te do comandante Paulo, que o levou para Cuba? – perguntou Nehone, tentando adivinhar o pensamento do irmão.
     - Então não lembro, o nosso compadre o camarada Pablo?... – respondeu Juba de Leão, mais animado.
     - É verdade, ainda me pergunto por onde andará hoje? - Insistiu Nehone.
     - Certamente que o Nataniel sabe, temos que o consultar.
     Por uns momentos alegrou-se. Endireitou o corpo e olhou longe, como que vislumbrando através da noite e da intempérie, o futuro brilhante de Nataniel como homem culto e sabido, com fama expandida pelo país, toda a gente devendo-lhe favores, uns, porque curou, outros porque salvou a vida, mais ainda, porque sendo pobres, os tratou de igual modo.
     Porém, o ribombo do trovão que os ensurdeceu momentaneamente, trouxe-o, sobressaltado, de volta à cubata e à realidade. Com um longo suspiro deixou pender a cabeça para o peito e, alquebrado, começou a chorar, quietamente.
     Nehone assustou-se.
     Será que pressentiu a morte e chamou-me para despedir-se?         
     Boquiaberto, não conseguiu acreditar que o ancião chorava efectivamente e amedrontou-se por ter sido obrigado a testemunhar, pela primeira vez, o sinal de fraqueza no soba e seu irmão mais velho. Olhou-o de frente, e o que viu revelou-lhe a certeza de que ele perdera a vontade de governar e de viver. E, numa explosão mais forte ainda do que o trovão, deu conta de que o sucessor que desejava apontar era Nataniel, o neto deles. Juba de Leão carpia porque tinha a convicção de que os desígnios por si traçados não frutificariam. O neto não aceitaria deixar a capital e viver as vicissitudes do campo e da vida tradicional amarrada a preconceitos antigos e cada vez mais em desuso e em vias de desaparecimento natural. Sobretudo não se submeteria a uma vida rude, de incertezas, que, em comparação à vida da capital era um simples desassossego. Pressentia que o neto recusaria o que, ao ser conhecido, desencadearia fricções, as leis da sucessão, se é que ainda existiam, não eram bem delineadas e seguidas como no passado do seu tio e do seu avô. A maioria dos sobas fora indicada pelos governos, tanto o colonial quanto o nacional, através de uma qualquer repartição ou de um qualquer ministério, ele nem sabia como nem porque razão, qual era soba, quais eram os sekulus. As lágrimas eram o canto do cisne das aspirações há muito torneadas em sua mente e coração.
     - O nosso neto não vai aceitar. – Falou alto para consigo próprio.
     Uma raiva surda amotinou-se, agigantada e em rompante pelo peito de Nehone.
     Eu que estou aqui e ele vai buscar tão longe, na cidade?...
     Confirmado que o velho pretendia o neto, descobriu com ciúme e inveja, não a inveja de talvez nunca vir a aceder ao cargo, mas a inveja da rejeição, a traição que se impôs-se a si próprio, já que nada lhe houvera sido prometido em tempo algum. Erguera essa vaidade, sem qualquer indício de apoio ou cogitação alheia.
     Eu que te servi toda a vida...
     Levantou-se sem pedir licença. Entrado em idade, aprendeu que a lealdade não se paga ou circula de igual modo entre quem a recebe e quem a oferece. Pela sua experiência, devia ter suspeitado que o poder e a lealdade são pesos e medidas diferentes.  A quem ela é exigida,  aconselha-se unicamente a percepção da sua utilidade, não da retribuição do seu valor.
     - Não posso ver o meu soba a chorar, vou sair. -  desculpou-se.
     Juba de Leão não se moveu, o que tolheu Nehone. Fixou o irmão até este reagir, uma eternidade, pareceu-lhe.
     - Senta-te, a conversa não acabou, temos muito para decidir. - respondeu, de maneira seca e altiva, já recomposto.
     Agarrou na bengala numa mão e no cabo do rabo de boi na outra, com o qual vergastou três vezes o ar, em raiva surda. A cada uma das zurzidelas, o estampido seco aferroou-se na mente e nos medos mais íntimos de Nehone. Sem notar encolheu-se e Juba de Leão sorriu, ciente de que restabelecera a autoridade e de que aquilo que o irmão testemunhara dali não sairia, o momento de fraqueza e de desalento tinham sido banidos para longe. Nehone sentou-se de imediato, e baixou a cabeça. Estabelecida a harmonia do poder, com a mão que segurava o cabo, agarrou na cabaça da bebida e estendeu-a, não com magnanimidade mas com amizade e suavidade.
     - Bebe, para aclarar as ideias. Este meu coração está a ficar fraco, como o de uma mulher- concedeu esta desculpa ao irmão.
     Nehone recebeu a cabaça, da qual bebeu, mais para abafar o rancor do que para agradar ao velho. E se se levantasse e afirmasse que não o permitiria, que levaria a questão ao conselho dos anciãos, aos curandeiros e adivinhos? Pronto morreu dentro de si a ideia. Olhou para Juba de Leão e suspirou fundo, parecendo resignado.
     Nataniel não vai aceitar, não vai querer abandonar Luanda. Quanto a ti, espera e tem calma, aguenta os ventos até o momento chegar.
     O soba grande chamara-o para consultas, e ele, incapaz de ler-lhe a alma, atrevera-se a conjecturar, numa vaidade justificada, a sua ascensão, elegendo-se por antecipação. Bebeu, sôfrego, até quase esvaziar a cabaça, sabendo que contra Nataniel seria difícil lutar, caso o velho levasse adiante a sua ideia.  Era o símbolo de prestígio do grande sobado, médico e militar, com um vasto horizonte à frente. Percebeu que o velho detinha os trunfos, pouco lhe valeria no concelho de anciãos opor-se, todavia não desistiria, ainda tinha cartas guardadas na manga que, com paciência e habilidade, lhe proporcionariam a estocada final.
     Bebe mais um bocado para ganhares calor!
     Agarrou na cabaça e esvaziou-a. O irmão olhou para ele, surpreso, e escancarou a boca num sorriso enigmático.
      Já deve estar a ver se me engana...
     - Cuidado, não bebas tudo...
     Nehone aventurava que talvez conseguisse, ali e agora, mudar-lhe as ideias, fazer-lhe  ver que o neto seria muito mais importante na capital, quem sabe um dia até poderia ser ministro da saúde, general, mesmo ministro da defesa, até presidente. E caso isso acontecesse, então o sobado seria muito melhor servido, Nataniel teria a estrutura central do poder para fazer avançar a região. Seria por esse ângulo que teria que convencer os anciãos, desejar algo muito mais elevado para o sobrinho e convencê-los que a vontade de Juba de Leão era válida e nobre, mas pecava por miopia e timidez. Iria provar-lhes que o grande soba já não ousava, perdera o instinto de caça, a noção da realidade e, pior do que tudo, preconizava o laxar da tradição, não queria seguir as leis antigas que levaram a que ele fosse escolhido para dirigir. Tentaria dividir o mais que pudesse, para conseguir impor os seus desígnios
     - Estou velho, preciso ponderar. - continuou o soba.
     - Senhor, ainda falta muito para esse dia.
     - Agradeço as tuas palavras, mas chegou a hora de pensarmos em quem vai tomar o meu lugar.
     Mas quem mais te deveria tomar o lugar?
     Juba de Leão não tivera irmãs, só ele, Nehone, filho de Teka, que verdadeiramente organizava e conduzia o dia a dia do sobado, sobretudo nos últimos anos em que a mente e acção do ancião começavam a dar mostras de caducidade.
     - Não há pressa, senhor. Isso pode desencadear lutas, há muitos sobrinhos, disse-lhe para lhe fazer relembrar a tradição.
     - Não haverá lutas nenhumas. Ninguém luta contra o leão, ele é o mais forte e o mais esperto. - retorquiu zangado Juba de Leão. – Acabaste com a bebida,
     Nehone baixou a cabeça e recuou. Não era a altura. Levantou-se, dirigiu-se à porta, gritou pelo moleque e, quando este chegou, pediu mais cerveja.
     A chuva redobrou e o cheiro da terra molhada penetrou novamente na cubata. Chuva abençoada que a todos alegrava. Na manhã madrugadora, ouvir-se-ia a natureza a estrepitar na terra húmida através do rostulhar das folhas e gravetos movimentados pela correria dos insectos vários, dos milipés, centopeias, ratos e lagartos. Quando o sol rebentasse, uma densa neblina vinda das entranhas da terra, em ascensão esbater-se-ia pelas copas das árvores, deixando no ar um odor penetrante de mofo e ranço.
     Pelas frestas das cubatas, para quem olhasse, percebiam-se os reflexos dos fogos a tremelicar e as conversas abafadas. Em todas elas especulava-se sobre os motivos da conversa dos irmãos, mesmo sob uma chuva torrencial e a horas que escurecera. A noite é para os feiticeiros, não para pessoas tratarem de questões, sejam elas quais forem, portanto coisa boa não deveria ser
     - Não será melhor deixarmos esta conversa para amanhã, quando a chuva passar? - solicitou Nehone.
     - Estás com medo da chuva, ou é o teu pensamento que te está a comer? - retorquiu com violência o soba.
     Levantando-se de um pulo, Nehone viu, ou pensou ver, aterrorizado, um raio varar a cubata, atingir o velho no peito e saltitar pelas quatro paredes da casa, saindo por onde entrara. Gritou apavorado, grito que só ele ouviu. Estonteado, caiu contra a tosca mesa.
     Juba de Leão, de pé,  saracoteava frenético à frente do irmão, o cabo do rabo de boi levitando no ar sobre sua cabeça em igual frenesi, da boca escorrendo palavras ininteligíveis que, ao ecoarem nas brasas sobre as quais agora dançava, compunham  a melodia dos gestos que grotescamente esboçava pelas paredes da choça em sombras fantasmagóricas.
     Com a cabeça a rodopiar, Nehone foi-se encolhendo até sentir-se do tamanho de uma lagarta e teve a impressão que o coração parara de bater, ou martelava em suas têmporas no latejar surdo dos tambores que ecoavam bem dentro de si.
     Kalunga, Kalunga todo poderoso, salva-me do poder deste homem!
     Uma luz esbranquiçada, que conferia uma aparência diáfana, irradiava do corpo suado do velho. A porta da choça entreabriu-se com o vento e o braseiro reavivou-se em chamas, como se alimentado por ramos e gravetos secos, no seio das quais o soba dançou por momentos que pareceram uma eternidade. Quando Juba de Leão caiu de barriga no solo, exausto e em completa imobilidade, a chuva cessou mansamente.
     Nehone não ousou mexer-se.
     O meu irmão é feiticeiro. O soba grande é feiticeiro!
     As palavras pensadas martelavam reverberantes em sua mente, apregoando a aparência evidente para a lonjura do infinito.
     O meu irmão é feiticeiro, ele é um grande feiticeiro!    
     Observou o corpo inerte do velho até sentir que este vivia. Só então ganhou coragem suficiente para se levantar e aproximar-se. Apalpou-se várias vezes, não se sabia se a sacudir a poeira ou a verificar se estava ali em carne e osso. Ao olhar para o esgar talhado na cara do soba, recuou assarapantado. Tremeu de medo, um medo ancestral, e não soube o que julgar. Pela mente viu-o feiticeiro, pelo coração sentiu-o sobrenatural, e pela alma, juraria que era divindade poderosa de reino tão tenebroso e medonho que nem arriscava sequer pensar no nome. Viria das profundezas da terra, o senhor da morte e do mal. Benzeu-se e, com o dedo, célere, fez a cruz três vezes no chão, à medida que cuspia outras tantas.
     Em nome do pai, do filho e do espírito santo.
     Juba de Leão virou-se, pesado, e pediu a Nehone, em voz cansada mas tranquila, que o ajudasse a levantar-se. Com muita relutância, Nehone colocou-o na cadeira, tendo ele logo procurado com os olhos a cabaça da cerveja de milho, que caíra sobre o catre onde dormia, mas não fez esforço para a solicitar. O silêncio reinou por um longo período.
     - O meu neto terá que ser chamado, os antepassados querem que ele ocupe o meu lugar.
     Nehone, que só deseja abandonar a cubata, não soube o que responder. Nada ali lhe demonstrara que os antepassados tivessem falado, aliás nem os ouvira, mas alguma força ainda o retinha pregado ao lugar para onde recuara. Acreditou ter gesticulado e pareceu-lhe ouvir saídas da sua boca palavras que não eram fala coerente, mas efectivamente suas.
     - Rohnes em-etimrep rias rop rovaf!
     - O que disseste? - Perguntou o velho, a rir.
     - Ojesed em-ri arobme, outse odasnanc, eved ret odis a avuhc, uem oproc iòd.
     O soba olhou para ele, boca aberta num sorriso como se já tivesse visto a cena centenas de vezes. Estava a medir-lhe o medo. Ergue-se penosamente, pedindo com o gesto a bengala que voara contra a pequena janela de madeira. Quando Nehone, mesmerizado, a entregou, Juba de Leão colocou-lhe a mão direita na cabeça e pediu-lhe para se controlar, para cessar de tremer feito uma donzela em momento de núpcias. Mandou-lhe abrir a boca e com os dedos enfiados pela goela, num gesto brusco, sacou-lhe o terror que o fazia falar coisas estranhas, fechando-o na palma da mão. Riu, gargalhadas esdrúxulas, os dentes falhos fazendo sobressair o que parecia desvario. Lentamente, levou as frases aprisionadas na palma da mão aos ouvidos do irmão e sibilou:
     - Escuta. Escuta o teu pânico, como ousas querer suceder-me?
     Nehone ouviu sua própria voz brotar da palma côncava da mão do velho:
     - Senhor, permite-me sair.
     Esforçou-se para fugir mas as pernas negaram-lhe a vontade. Caiu de joelhos, sem forças para se sustentar e temeu por sua vida, as palavras do irmão ricocheteavam na mente.
     Como ousas querer suceder-me?
     Desejou pedir-lhe perdão mas a fala  não se materializou. Baixou a cabeça, ciente que o soba grande era duende poderoso que o levara a falar ao contrário. O ódio avultou-se-lhe no coração e teve intenção imediata de o matar, ali mesmo, todavia apenas o eco saindo da palma côncava da mão de Juba de Leão:
     - Desejo ir-me embora, estou cansado, deve ter sido a chuva, meu corpo dói.
     Juba de Leão retirou a mão do ouvido de Nehone que, ao reconhecer o sentimento de cobardia no que antes dissera de maneira ininteligível, caiu de borco no chão, desmaiado.  
     O velho pressentiu que havia gente junto à porta, dois ou três mais ousados que, não resistindo à curiosidade, e com o cessar da chuva, se haviam aproximado cautelosamente para tentar ouvir ou ver o que se passava.
     - Venham retirar este homem daqui e levem-no para a sua casa. - gritou.
     Ouviu os passos abafados de retirada precipitada. Sorriu e fez soar o sino. Escassos momentos após, apareceu o jovem servente que, receoso, pediu autorização para entrar. Vendo o soba de pé e o irmão prostrado a seus pés, sentiu um frio gélido penetrar-lhe os ossos. De olhos esbugalhados, recuou a bradar pela aldeia.
     - Ai minha mãe, minha mãeeee, manhéééé...
     As pessoas acorreram à choça do soba aos gritos, o curandeiro à frente, pensando-o morto.
     Penosamente, deslocou-se para a entrada e olhou para eles, desdenhoso e desafiante.
     - Quem morreu? - perguntou numa voz roufenha.
     Todos pararam num silêncio absoluto. Uns, envergonhados. Outros, receosos. Foram recuando aos poucos. O velho observou-os por uns instantes e depois, apontando o dedo para Tuluka, o mestre curandeiro, ordenou-lhe:
     - Entra, o mestre conselheiro adoeceu. Os outros podem regressar às vossas casas.
     Virou-lhes as costas e arrastou-se para dentro, logo seguido de Tuluka.
     - Fecha a porta. - Comandou, enquanto se sentava.
     O curandeiro olhou para Nehone, que continuava inerte onde tombara.
     - Teve medo, os antepassados falaram. - Disse o soba, com altivez, mentindo.
     - Vou buscar as coisas e o ajudante. - Retorquiu Tuluka, retirando-se lesto.
     Juba de Leão procurou pelo cachimbo, renovou a liamba e colocou-lhe uma brasa em cima. Sentou-se, mais reconfortado. Chupou com avidez, tossiu várias vezes e escarrou para o chão, limpando a boca com as costas da mão. Pronto a cabeça pendeu-lhe para o peito e caiu num profundo sono.
     Quando o mestre curandeiro e o ajudante entraram, após terem batido três vezes as mãos e não obterem resposta, colocaram-no no catre, sobre um cobertor velho e mal cheiroso. Procuraram por um pano e taparam-no, sorrindo em aprovação do estado em que se encontrava. Tuluka agarrou no cachimbo, fumou pausada e longamente, enquanto o ajudante preparava as coisas para iniciar a sessão.
     Os antepassados haviam falado, dissera o soba, caso fosse verdade, logo saberia o quê.

O FILHO




E viu-se outro sinal no céu;
e eis que era um grande dragão vermelho...
e o dragão parou diante da mulher
que havia de dar à luz, para que, dando à luz,
lhe tragasse o filho.
S. JOÃO - APOCALIPSE 12

 

 sete longos anos que  o filho lhe remexia as entranhas. Não havia  dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro, que lhe falava em silêncio penoso.
No início da gravidez os médicos  observaram-na cuidadosamente, todavia, à medida que os meses passavam, insinuaram uma gravidez psicológica.
Ao décimo sete mês, uma amiga, insidiosa, propôs-lhe a possibilidade de uma barriga de água.
“Não sabes o que é, eu explico-te?...”, ofereceu-se.
As íntimas, propuseram os remédios da terra, a visita aos kimbandas, aos adivinhos. Não haveria nada a perder, que não tentasse esconder o que é da terra. Mulher grávida  há sete anos só pode ser curada com a tradição, com o debicar engasgado do galo.
Angustiada, cruzou as longas pernas, vestia o robe de chambre azul cor das águas e reclinou-se no cadeirão de couro da vasta sala de visitas de sua casa.
Acendeu, silenciosa, um cigarro. Não queria ser apanhada em kimbandas. Isso não. Seria  o perder do pudor, sabia que os rótulos arquitectam-se nos vastos silêncios sociais.
Atirou, com displicência, o fósforo para o cinzeiro e serviu, da pequena mesa ao lado uma bebida, levando-a à boca em longos e melancólicos sorvos.
Olhou para o quadro pendurado na parede oposta. Paisagem típica africana, o capim em movimento, fustigado pela brisa da tarde. Suspirou nostálgica, sentindo a paisagem embrenhar-se nos poros das paredes da sala, e o copo da bebida estremeceu na mão, à carícia do vento melódico que soprava do norte. O fumo nervoso do cigarro esvaiu-se no ar, rumo ás nuvens onde pairavam as águias das palmeiras, enquanto que, contemplando o momento de ilusão, acabou por tombar adormecida anestesiada pela angústia do desassossego, ao badalar dos pios angustiados do mocho ora desperto na árvore soberba.
O marido entrou na sala, olhou o rosto tranquilo e ainda fumegado do cigarro meio perdido de cinza, e retirou-o da mão palpitante.
As águias das palmeiras gritaram, estrídulas.
Como todos, igualmente pensara que a estória da gravidez fosse passageira, e por essa razão acarinhara os anseios da esposa, nunca a desfalcando de amor e compreensão.
“Olha a criança mexeu, o nosso filho mexeu, não viste?”, dizia-lhe, mão no ventre ofegante.
E com este acanhamento vestido de verdades aparentes, foi contando aos parentes e amigos as vicissitudes de futuro pai.
Por volta da gravidez psicológica começou a não conseguir pôr cobro à chacota mal disfarçada, aos ditos apenas sussurrados à sua passagem.
O desânimo aproximou-o mais da esposa e passaram horas de deleite encontrando nomes para a criança, para o filho.
“Sim só poderá ser um menino”.
Inventaram creches e escolas.
Mas quando qualquer dúvida renascia, quando o terror se lhe assenhorava da alma, fugia  tinhoso para a amante, pronta e aberta, que o  compensava pela gravidez inexplicável, mesmo se, no expirar do tempo, partia mais triste do que viera e mais vazio do que chegara, revertido criança na estórias meio contadas dos adultos, de ser ele o filho do dragão, o fruto do pecado e da vergonha sempre eterna que lambe as labaredas do inferno.
Seu pai, era tio de sua mãe.
E na descendência dos mal amados, os antepassados obrigá-lo-iam a carregar até aos fins do caminho, a sarna que há sete anos passara para o ventre frutificado da esposa.
Só poderia ser isso.
Agarrou o sufoco e embrenhou o medo nos seios flácidos da amante.
Regressou a casa encontrando a mulher ainda no mesmo lugar, adormecida. Pensou em acordá-la, não o fez, sentou-se no cadeirão e  teve a leve sensação de sentir a carícia do vento no rosto.
No véu da memória que não era a sua,  o cadeirão de couro da sala era o tronco seco já meio apodrecido no capim onde sua mãe, ainda mulher-meia, tentava agarrar a brisa suave com as mãos, enganando o desespero que a cingia porque, em breve, seria a época das queimadas, a derruba do nicho incestuoso do amor, e assim não poder encontrar-se com o tio para as rezas suplicantes da carne.
No tempo do cacimbo, a terra reveste-se de castanho seco, a mata ressequida é  chama lambedora do fogo-posto, impudico em labaredas devoradoras . De um momento para o outro, o que era  abrigo e escondia momentos prazerosos, nada mais seria do que um descampado com nascente capim verde,  pasto das seixas, dos veados, até mesmo das pacaças mais afoitas.
Na espera do tio, deitou-se não longe do tronco e pressentiu, que alguém se sentara. Soergueu-se com ansiedade mas não, não fora o tio que chegara, aliás tê-lo-ia visto.
Recordou o momento acre-doce de devaneio, da entrega rendida ao latejo do desejar. Tinha quinze anos e o tio vinte e oito. Verdadeiramente nunca conseguira explicar por palavras ou pensamentos conscientes como tudo começara, o que a dominara, possuíra, feita animal envolta nos perfumes do cio manifestado.
Uma tarde de calor, o capim alto observando-a, aconchegando-a, excitando-a ao âmago, foi a carícia que fez jorrar a água das fontes internas do desejo. Abrira a blusa e expusera os seios negros e luzidios ao beijar da brisa, ao  restolhar das folhas próximas das árvores.
Mulher feita, mulher desejando, arfando sem motivo aparente. Mulher fêmea em aromas vaporosos, ainda que não sabendo.
E quando o tio apareceu feito vadio, como que não conhecendo das tardes de calor da sobrinha, ela fez que não sabia do desejo e do ardor, pretendendo que nunca desejara o que então estava pronto e sacrificial.
E talvez até tivesse sido assim.
Na escuridão da eterna culpa e no despir da razão vacilante, em jeito de despedida, sem saberem ou desejarem, na morte da alma entregaram-se arfantes um ao outro.
Deram-se a carne perante os olhares nunca adormecidos dos que eternamente vigiam, dos que vivem nos fundos dos rios e das lagoas. E dos que percorrem os caminhos tortuosos dos matos nas noites de luar cheio.
Quando se sentiram saciados, lambuzados do mel e da água viscosa que brevemente os unira na perdição, ficou como marca do diálogo que os corpos mantiveram, a brusca revoada das perdizes assustadas com o lancinante grito de dor do conhecimento que ganhara.
O sangue virginal no capim não foi chorado nem cantado pelas mulheres, como deveria, em afirmações honrosas.  O último pingo da seiva amorosa que escorrera envergonhado das carnes já marcadas pela maldição, teimosamente agarrou-se à pequena espiga dobrada, até que a  hiena sequiosa o lambeu em gargalhada esdrúxula do pôr do sol.
Nunca mais se falaram, quase nunca mais se olharam, mas nos momentos inseparáveis em que ambos sonhavam com as águas do rio transbordando raivoso pelas margens, nesses momentos, como que por acção fatídica, encontravam-se para o amor, para a troca de fluidos, sempre sob a vigilância acesa dos olhares albinos dos que nunca adormecem, dos que vivem com os caranguejos doces.
Aos dezassete anos engravidou. Pérola lançada no chiqueiro.
O tio, em fuga para terras longínquas e inacessíveis, lugares inenarráveis, ninguém mais dele soube.
“Acusa o padre da missão, já tem dois filhos.”, recomendou-lhe ainda.
Aos dezassete anos engravidou minutos quando foi derrubada a árvore ainda verdejante dos sonhos.
“Acusa o padre da missão, não sejas parva.”
Engravidou horas, dias, semanas, até o aterrador compasso do tempo não permitir mais aquele esconder do inevitavelmente inescondível.
Engravidou desesperos e raivas ancestrais obscuras que desconhecia.
Das mãos paternas, medrou chicotes cavalomarinhados em sulcos ardentes fendidos no corpo tenro, na ira sempre justa e profunda da família secular, e na dança das kiandas injuriadas
Foi fechada, desterrada para o convento das madres carmelitas até ao fim do pernoitar do pecado, para o nascer alvoroso do dragão encarnado, já que a noite não é para ser vista com os olhos do dia.
No parto-morte clamou por vingança no nome daquele que fustigara sua inocência, que saciara seu desejo de virgem-fêmea não conhecedora das regras com que a natureza joga o jogo dos calores e dos suores.
 Pois que a natureza se vingasse.
Gemeu as entranhas até o filho nascer e, ao sustentá-lo brevemente nos braços para lhe inculcar todo o fundo tenebroso de sua alma, cuspiu com o olhar embaciado pela dor a maldição perpétua e autófaga. Só então sentiu a força das lagoas profundas a puxar, feliz e liberta.
Na sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não da febre mas do desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.
A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.
“Que situação ridícula, não posso”.
Todavia os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso do plasma.
Em seguida veio a paz e o ruído meigo das cataratas deslizando sobre as rochas em musgo.
Foi, na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.
Do carcomido ventre da esposa saiu assustado um sardão vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas.
O corpo da mulher exalava todo o perfume e aromas mornos das festas das divindades aquáticas.
Ele, coitado, anunciava feliz aos rostos contritos de ansiedade, que o contemplavam em silêncio, que o filho finalmente nascera.
Agora que o desculpassem, teria que ir buscar mel ás colmeias e leite ás tetas das cabras para o alimentar.

domingo, 2 de dezembro de 2018



CARTAS

Minha Genoveva, 
Senta-te para que não caias de surpresa, já que é a primeira vez que nos falamos e poder-te-á ser, ou não, agradável o que vou contar. Quando o meu bisavô foi para as Áfricas, já lá vão precisamente 98 anos, certamente ninguém pensou na sua aldeia que voltasse, mas foi o que fez, como talvez saibas. Deixou aí filhos com uma lavadeira negra, um deles o teu avô, de nome Miguel Gomes, só isso é que sei. Parece que vivia em Benguela e o teu pai ou a tua mãe, cujos nomes não conheço, se ainda forem vivos, por certo saberão confirmar o que digo. Sou, pois, tua prima afastada, sendo o nosso bisavô o mesmo, já que ele aqui tornou a fazer filhos, tendo-se casado com a minha bisavó, D. Engrácia Gomes. Fiquei muito feliz quando recebi do consulado português em Luanda a indagação se por acaso um tal José Armando Gomes seria aquele que estiveram em Angola de 1900 a 1930 e cujo assento de baptismo de um filho, Miguel Gomes, constava na paróquia do Carmo, em Luanda. Acho que terás sido tu a inquirir, pois foi esse o endereço que me foi fornecido. O resto, é este primeiro contacto. Manda-nos fotografias tuas e da família, explicando tudo muito bem, quem são e como estão. O retrato que anexo é do Augusto, meu marido, eu e o nosso filho Tobias, tirado no jardim zoológico o ano passado, quando fomos a Lisboa de férias. Por acaso tirada ao lado dos elefantes, quando não sabíamos que tínhamos parentes em África, vê lá. Tua prima que te adorará conhecer um dia. Ana Rita P.S. Que cor és?... 
Mário Maldonado ao chegar a casa, encontrou a carta aberta em cima da mesa na sala de jantar. Certamente que a mulher aí a tinha deixado para que ele a lesse. Momentos depois, quando esta saiu do quarto, jocoso, perguntou, à guisa de cumprimento: “Então foste descobrir uns pulas teus parentes na meloi?” De facto assim fora. Genoveva descobrira uns documentos guardados em um embrulho de papel castanho meio comido pelas traças, numa mala com coisas que tinham pertencido a sua mãe, que davam a entender que talvez pudessem ser de seu familiares. Sem dizer nada ao marido, consultara os registos da igreja e contactara o consulado português em Luanda, que se prontificou a averiguar. “Que mal há, são parentes e devemos conhecer as nossas origens.” “Vem mesmo a calhar, para o ano vamos lá passar férias.” “Achas que vão querer ter na terrinha uns pretos como parentes?” “Será por isso que perguntam qual a tua cor?” “Penso que não, deverá ser só curiosidade. Conhecem que o bisavô fez filhos com a lavadeira minha bisavó, portanto pensam que no mínimo mulatos devem existir.” “Lá isso é verdade.” “Envia-lhe umas fotografias e logo verás...” Se a minha mãe estivesse viva, iria ficar bem contente. Ela sempre nos disse que tínhamos sangue de branco.” “Por acaso recordo-me da tua mãe, era negra mas notavam-se-lhe os traços europeus. Mas o que vais fazer?”, perguntou-lhe. Genoveva Maldonado parou para pensar. O lógico seria responder e dar tempo ao tempo. Aguardar que uma amizade se formasse, ou que a curiosidade soçobrasse no mar de esquecimento que a distância produz. Ardia por saber mais daqueles primos distantes, em lonjura e parentesco. Ter tido conhecimento que tinha família para além da conhecida, e em outras partes do mundo, fora uma agradável experiência. Eram raízes dum tronco comum que se revelaram abruptamente, um passado que emergia e a incorporava. 
“Creio que vou-lhes responder e aguardar, nada mais posso fazer. E um dia, quem sabe, talvez me convidem a visitá-los.” “nos convidem!...”, emendou o marido. Com a felicidade da primeira carta, na manhã seguinte respondeu à prima. 
Querida Ana Rita Fiquei muito feliz em receber a tua carta, não só porque foi uma surpresa como igualmente revelou familiares que nunca sonhei ter, não obstante minha mãe me falar de um avô mulato, seu pai, portanto. Meu avô chamou-se em vida Abílio José Gomes e casou-se com uma senhora negra, Celestina. Geraram vários filhos, entre eles a minha mãe, Francisca Gomes, que por sua vez se casou com um outro senhor negro, António Nóbrega da Silva, que me fizeram a mim, esta tua prima Genoveva Silva Maldonado (o último nome por casamento) e mais dois irmãos, todos vivos. Ficas, assim, a saber do ramo africano da família gerada por nosso bisavô, pelo menos do meu lado. Estou um pouco atrapalhada por não te conhecer e portanto, não saber o que te dizer. Quanto ao nosso país, certamente sabes de tudo, ou quase. Há anos que nos guerreamos e destruímos, sobretudo por causa de um doido que teve que nascer nesta nossa terra maravilhosa, para mal de todos nós. Quando desejares vir até Angola, tens aqui casa. Por ora é tudo. A fotografia é minha, com o meu marido. Não é muito recente mas ainda estamos assim, talvez um pouco mais magros. Tua prima. Escreve! Genoveva 
Dois meses passaram e Genoveva nada mais ouviu de Ana Rita, facto aproveitado pelo marido para a espicaçar. 
“Eu bem te dizia, logo que souberam que havia negros na família...”  
“Pode ser, mas duvido. Sabiam que os havia, pelo menos a bisavó.” 
“Certo, mas a confirmação de uma hipótese mudou tudo. Olha, o teu avô poderia ter casado com uma branca ou mulata.” 
“O que interessa tudo isso?” Ana Rita dirigiu-se à varanda para estender a roupa lavada da véspera. À noite houvera luz, as sagradas oito horas distribuídas ao bairro. Esta manhã tê-la-iam até ao meio dia e, depois, tornaria a voltar a partir da meia noite. A campainha da porta soou e Mário abriu. Era o carteiro a entregar a correspondência, entre a qual, uma cartas de Portugal. 
“Véva, gritou ele para a varanda. “Tens aqui uma carta da tua prima portuguesa!” 
Genoveva veio a correr e não conseguiu conter a excitação. Quase arrancou a carta da mão do marido e, nervosa, abriu o envelope. Sentou-se na cadeira e leu alto. 
Genoveva minha querida, Recebi a tua carta que muito me alegrou, foi uma sensação cá em casa. O Augusto, que sempre foi do PCP e nunca esteve em África, ficou radiante. Claro que isso serviu para mais um sermão sobre o passado colonial-fascismo e o apoio dos capitalistas do PSD às tendências neocoloniais em Angola, etc., etc. 
Eu também sou do PCP, mas às vezes o Augusto chateia-me com as conversas dele. Se não é o partido, então é o Benfica. Já todo o bairro sabe que temos família em África, angolanos genuínos, como ele repete por tudo quanto é canto. Foi muito gentil da vossa parte porem a casa à nossa disposição, quem sabe se um dia não teremos essa alegria de aí ir, embora duvide muito. Não temos posses e a viagem custa bastante. Segundo consta aqui em Portugal, vocês é que são um país muito rico e há por aí um monte de carros novos, dizem que todos têm um e que os angolanos viajam muito. Alguém contou-nos que em vez de dentes de ouro, vocês usam dentes de diamantes e que o petróleo até escorre nos bairros de Luanda. Se isso for verdade, então certamente será muito mais fácil vocês virem cá. A nossa casa é pequena, mas sempre se arranja um espaço. O Augusto pede-me para te perguntar que regime político têm agora? Sabíamos que eram comunistas, porque o Dr. Agostinho Neto foi retirado da cadeia pelo nosso Partido. Mas desde a nova situação mundial, diz-se por aqui que são cristão democratas. Ele jura a pés juntos que isso é mentira, nunca fariam uma coisa dessas, sim senhor que poderiam ter mudado mas não tanto assim, já que fizeram uma luta de libertação nacional contra um sistema que oprimia as massas. 
E aí há o Benfica? Também para o que está a jogar, se não houver não faz falta nenhuma! Desculpa lá, mas nas minhas cartas irás sempre encontrar um pouco de política e futebol. Talvez tenhas orgulho em saber que esse nosso bisavô foi um garanhão, pois com a minha bisavó, fez ainda cinco filhos. Por hoje é tudo. Cumprimentos ao Mário. Tua Ana Rita 
“Com que então angolanos genuínos, heim?”, riu Mário Maldonado. 
 “Mal sabem eles o que isso aqui quer dizer!...”, riu Genoveva igualmente. 
“Agora que descobriste esses parentes brancos lá se foi a tua genuinidade, passas a ser extra angolana...”, provocou-a. 
“Muito me preocupa! Olha para o Hitler e os seus genuínos. Isso são teses de atrasados mentais, mentecaptos.” 
“Eh lá!... O problema não é teu, não vale a pena exaltares-te.” 
 “Já sabes que me aborreces quando me provocas com esse tipo de argumento.” 
“Tá bom, tá bom, não vale a pena guerrearmo-nos por causa disso.” 
“E que tal essa de sermos cristãos-democratas?”... riu Mário. 
“Eu cá disso não quero saber, já me bastaram os anos do PT, embora, em abono da verdade, estivéssemos muito melhor do que agora.”, respondeu a esposa. 
“Cinco filhos, é?!... faço ideia a cambada de primos que por lá deves ter, alguns até talvez aqui sem ninguém saber.” 
“E se lhe mandássemos um PTA para ela vir’” 
Dias após, escreveu à prima. 
Querida Ana Rita, Sou novamente a agradecer-te a carta recebida há tempos. É sempre uma alegria ter notícias tuas e dos teus. Nós bem graças a Deus. Então vocês são comunas? Eu e o meu marido não somos nada, na época do partido único tínhamos que ser do MPLA, votamos nele e no presidente, mas hoje, se queres que te seja franca, não somos nada, incluso duvido muito que nos próximos vinte anos tenhamos eleições. Tudo aqui vai de mal a pior, cada vez mais pobreza, não é nada aquela riqueza que por aí se fala, isso é para muito poucos. Dentes de diamante?!... A miséria aumenta a olhos vistos e, por consequência, a criminalidade, a prostituição infantil, os deslocados, os mutilados, enfim, um horror de nunca mais acabar, para além desse criminoso que não para de fazer a guerra porque sonhou ser presidente a todo o custo. Puxa, e não há quem acabe com essa peste! Quanto ao sermos cristãos democratas, olha, estou fora da política, só sei que houve mudanças quando a União Soviética faleceu, mas os que lá estavam antes continuam a ser quase todos os mesmos. Julga por ti própria, não me quero aborrecer com essas coisas, até porque tenho um projecto que está quase a arrancar, à custa de muitos anos de sacrifícios e negócios. Podes falar de política e futebol à vontade, ambos são jogados muito com os pés e pouco com a cabeça. Eu e o Mário vamos abrir um pequeno restaurante na Ilha. A Ilha de Cabo é uma extensa língua de areia ligada ao continente por uma ponte, e um ponto de turismo e recreação luandense. Será um restaurante especializado em pratos típicos angolanos e, talvez mais tarde, em de outros países africanos. Estamos seriamente a pensar em convidar-te a vires passar uma temporada connosco, infelizmente falta-nos o kitadi (dinheiro) para vos convidar aos dois, mas talvez só lá para o fim do ano. Depois confirmamos, mas vai-te preparando psicologicamente, isto aqui é muito quente, com mosquitos e moscas mil... Quanto ao Benfica, em Angola não existe mas muita gente continua a ser dele, por incrível que te possa parecer. Até o meu marido! Tua Genoveva. 
Quando Mário Maldonado regressou a casa para o almoço, encontrou a mulher em pratos e rodeada de umas tantras vizinhas. Ao vê-lo, desatou aos gritos. 
“Meu Deus, quem morreu?”, inquiriu apavorado. 
“Calma vizinho, ninguém morreu.”, tranquilizou-o uma das mulheres presentes. 
Mais aliviado, suspirou fundo e recompôs-se, já com Genoveva agarrada a ele aos soluços. “Assaltaram-me e roubaram-me o carro.” 
“Acalma-te filha. O carro recupera-se, o principal é que não te aconteceu nada.” 
“Dois homens, um com uma pistola. Nunca tive tanto medo na minha vida.” 
“Já deste participação à polícia?” 
“Deves estar a brincar, felizmente que o Antunes passou e deu-me boleia para casa.” 
“Então compõe-te para lá irmos.” 
Foram à polícia e deram participação do roubo, sem grandes esperanças na recuperação da viatura. Três semanas após este incidente, Genoveva recebeu nova carta da prima.  
Querida Genoveva 
Espero que não estejas a brincar quando dizes que me convidam a ir a Angola. Quase que morri de emoção, porque, salvo uma muito breve ida a Espanha, numa excursão do Partido, não conheço mais país nenhum. Esse acontecimento, a ter lugar, certamente que será o maior da minha vida e relembrado para sempre. 
Olha, o idiota do Augusto agora só diz kitadi em vez de dinheiro. Fartaram-se de rir, chamando-o de parvo, porque esse kitadi não vale nada. É verdade? Disseram.lhe que vocês são todos milionários, porque nada se compra com uma nota de um milhão. Claro que não acreditei, como se isso fosse possível! Qual é o país que tem notas de um milhão? 
Ficámos muito felizes por saber que vão abrir um restaurante de pratos típicos do vosso país. Nós nunca comemos nada de Angola. Será que dá para mandares uma receita de um prato que se possa fazer com facilidade? Nada dos muito complicados, tá? 
Então deixaram de ser comunistas e dizes que não sabes o que são? Francamente, não entendo nada! No nosso PCP a única coisa que mudou foi o camarada Álvaro Cunhal por ter que se reformar, temos agora o camarada Carlos Carvalhas, mas o Partido continua a ser o mesmo, a nossa bandeira continua a ser a foice e o martelo e a ser vermelha, os nossos estatutos e objectivos os de sempre. Mas enfim, o mundo muda e esse assunto é vosso. 
Hoje estou fraca de notícias, por isso fico por aqui. 
Tua, como sempre, Ana Rita 
O tempo passou e Genoveva foi-se habituando ao facto de não mais ter viatura. Descria que alguma vez a recuperasse, ou se tal acontecesse, certamente que metade das peças teriam sido roubadas. O marido prometera que em breve comprariam outra, em segunda mão. Quanto mais velha, menos probabilidades de ser roubadas. 
O fosso da distância que separava as primas foi encurtando com a troca consistente de correspondência, iam-se conhecendo aos poucos. Na última, Ana Rita solicitava mais uma vez que Genoveva lhe enviasse uma receita de um prato angolano. Esta nunca lhe falara do roubo do carro, não desejara projectar essa imagem do país, onde se roubam carros à mão armada como quem troca de camisa. 
Querida prima, 
Há algum tempo que não te escrevo, são preocupações da nossa vida que o impediram, mas nada de sério. Estou em falta para contigo, de facto já deveria terte enviado a receita de um prato nosso, se queres que te diga, nem sei de quê. Como aí é fácil adquirir carapau, vou-te ensinar um prato típico luandense. É o mufete, que às vezes comemos com feijão de óleo de palma, outras com pirão. Arranja uns carapaus, segundo o número de pessoas, e farinha de mandioca torrada. Aí talvez encontres a brasileira, mais fina e de menor qualidade que a nossa. A essa farinha, nós chamamos farinha musseque, sendo o musseque a terra batida e encarnada africana. Foi nessas terras, portanto não asfaltadas, que a colonização criou os bairros periféricos dos negros, e daí esses bairros passaram a chamar-se, por extensão, musseques (este parêntesis é para o Augusto). 
Também precisarás de cebola, tomate, azeite doce, vinagre, gindungo (piripiri), sal e água. Lava o peixe e coloca-o a secar, sem ser escamado ou retiradas as vísceras (faço ideia da cara que deves estar a fazer, mas acredita que dá melhor gosto). Deves assá-lo em poucas brasas, para ser lento e sem ser queimado. Vais voltando os lados a fim de que fique assado homogeneamente. Quando estiver pronto retira das brasas e serve quente, colocando só então o sal. Faz acompanhar com pirão, bastante fácil de preparar. Enquanto o peixe é assado, pica a cebola e coloca-a numa tigela com os outros ingredientes, salvo a farinha musseque, que é adicionada aos poucos e com cuidado para que não fique molhada, mas sim leve e solta. Bom apetite. Espero que te saia bem a experiência, se não gostares, não desanimes. 
Para tua informação, já que aí em casa se deve ter passado a mesma coisa, o meu marido teve um ataque de nervos quando Benfica perdeu com o farense, o lanterna vermelha do vosso campeonato. Essa noite não dormiu e acredita que isso não entendo. Primeiro, porque não ligo nenhuma a futebol, segundo, porque não entendo como é que alguém pode sofrer por um clube que nem é da terra dele, mas como se diz, cada maluco com a sua mania. Eu que aguente. 
Tua prima que muito te preza. Genoveva 
O dia amanhecera solarento mas abafado e a ameaçar chuva. Genoveva encontrava-se em casa quando o carteiro trouxe a correspondência, uma única carta, com o carimbo de Luanda. Sentou-se à mesa, sorveu o chá que tomava e, com a faca, abriu o subscrito. Retirou a carta e leu, no fim largando uma grande gargalhada. Partiu a correr para o telefone. 
“És tu, Maldonado? Não acreditarás no que te vou contar!...” 
“O que foi?” 
“Vou ler-te uma carta que recebemos esta manhã.” 
“Outra carta da Ana Rita?” 
“Não, dá bem atenção.” 
“Diz lá...” 
“Vou ler!...Meus caros, sou muito vosso amigo e por gostar muito de vocês é que vos tirei o carro, porque se vos pedisse, não nos dariam.” 
“Estás a brincar!...”, cortou o marido. 
“Deixa-me acabar. Arranjei a avaria no disco de embraiagem e meti novos faróis. O carro encontra-se neste momento à frente da escola Nzinga Mbandi.” 
“Certamente que é brincadeira, já lá foste?” 
“Claro que não.”
“Estou a caminho, prepara-te.” 
“Aguenta aí, isso não é tudo. Diz ainda: quero desculpar-me de todos os problemas e do susto que vos preguei, por isso, no dia 23 convido-vos a jantar comigo, às 20.30, no Ponto Final, onde desejo redimir-me do pecado, contando com o vosso sentido de humor.” 
Feliz ficou o casal ao chegar à escola Nzinga Mbandi e ver estacionado o seu carro. Genoveva, que o conduzia no regresso, verificou que de facto a embraiagem estava reparada, para além dos novos faróis. Nessa noite caprichou no jantar, até velas colocou na mesa e um arranjo floral. 
“Quem será o engraçado, ou os engraçados?”, perguntou Maldonado. 
“Passei o dia inteiro a pensar nisso... nossos amigos ou conhecidos, terão que ser.”, disse Genoveva. “De qualquer dos modos, mesmo com as reparações, é uma partida de mau gosto...” 
“Hoje são dezoito, não é? No dia 23 logo saberemos quem são, e então veremos o que faremos.” 
“E vamos mesmo ao tal jantar?”, quis saber Maldonado. 
“E porque não?”, respondeu Genoveva. 
E ao jantar foram. Chegaram quinze minutos mais tarde para não parecer mal e esperavam há meia hora, quando mandaram chamar o gerente. Apareceu o dono do restaurante e confirmou que sim, um senhor havia reservado por telefone aquela mesa para eles, eram o casal Maldonado, não eram?, e que caso se atrasasse lhes oferecesse uma garrafa de champanhe pelo incómodo da espera, mas que vinha certamente. 
Às dez horas decidiram ir-se embora, com um problema dos diabos, pois o restaurante queria saber quem iria cobrir a garrafa de champanhe bebida. Por fim chegaram a um acordo, em que Maldonado prontificou-se a pagar meia garrafa, pois, segundo o dono, quem sabe se aquilo não era uma tramóia para lhe mamarem uma garrafa de champanhe, sendo cúmplices de quem telefonara? 
Ao longo do caminho, mal falaram e todas as dúvidas que tinham sobre o brincalhão se esvaeceram. Se o apanhassem, fariam dele carne picada. 
Subiram em silêncio e quando Genoveva abriu a porta do apartamento e olhou para dentro, caiu desmaiada. Nem uma carpete restara! O apartamento tinha sido esvaziado de tudo que continha, excepto a papelada que jazia amontoada no chão. Maldonado olhou à volta, descrente, e deixou os olhos pousar no amontoado de papéis, no cimo do qual jazia uma carta aberta. 
“Querida Genoveva, 
Espero que não estejas a brincar quando dizes que me convidam a ir a Angola.”, começou, distraído, a ler.