CAPÍTULO I
A
imaginação foi sempre
O húmus do
jardim de Clio.
(Alberto
da Costa e Silva)
O céu
escureceu rapidamente coberto por extensas
nuvens negras e as copas das árvores vergaram-se, ondulantes, às danças
macabras do vendaval. Aos pios das aves foragidas que nelas procuraram refúgio
e abrigo, juntou-se o detonar seco e metálico do primeiro trovão, que ribombou
transformado eco sinuoso em cavalgada desabrigada pela lonjura do infindo.
Nas
ruelas da aldeia correu gente aos gritos, mães assustadas em busca dos bedelhos
desgarrados. Afoitos, os homens guardaram nas choças pertences vários como
puderam, enquanto os mais jovens pularam ruidosos, encantados pelo aguaceiro
que sobre eles principiara a tombar, no velho ritual das cabriolas de alegria e
dos gritos de prazer ao ameno flagelar da água sobre seus corpos luzidios.
Na cabana
principal, sentado numa cadeira de madeira avermelhada, meio escurecida pelos
fogos do braseiro, Juba de Leão, o soba grande, sorriu melancólico e cuspiu o
tédio para o chão de terra batida, após as baforadas que tirou à mutopa quase
apagada, em serena apreciação do fumo a invadir-lhe o peito, num calor antigo e
familiar. Agarrou na cabaça da cerveja de milho, levou-a lentamente aos lábios
e sorveu até se sentir satisfeito. Pela porta entreaberta percebeu as bátegas
da chuva, que lhe pareceram minúsculas flechas de ferro a entranharem-se pelo
solo com gritos prenhes de exultação. Anestesiado pela bebida e pelo odor
penetrante da terra molhada, suas
pálpebras baixaram sobre o mundo que o rodeava e tombou adormecido, a cabeça a
pender sobre o peito, enrugado como casca de embondeiro carcomido pelo tempo.
Teria
nascido no início do século, não sabia ao certo o ano, agora que se tornara
ancião dera para falar muito de campanhas de grandes reis contra os brancos.
Lembranças onde as lendas se fundiam nos factos e nos mitos, remando entre
raios, trovões, cataclismos, transfigurações, metamorfoses e aparições
inopinadas que levaram o branco que procedia à ocupação militar das terras, a perseguir
exércitos de guerreiros invisíveis, imunizados contra o trovejar da sua
artilharia. Desiludido, prisioneiro do poder da tradição, das suas leis e
regras, incapaz de vencer a barreira do tempo, sentindo-se responsabilizado
pelos desaires dos antepassados, das guerras perdidas, das rendições
incondicionais, da subjugação abjecta à arrogância forânea, resmungava que
nunca se extirparia por completo a erva daninha do bojo da boa, haveriam de
medrar sempre juntas como irmãs gémeas, já vira muitas luas ir e vir, mais do
que as estrelas que existiam nos céus, ele bem sabia. E quando as crianças o
ouviam, abriam as bocas em espanto e descrédito.
Mais luas do que as estrelas que há nos
céus? O nosso rei é poderoso!
Da cabeça
pendida, a baba escoava-lhe peito abaixo. Em estupor, o corpo sacolejava
ocasionalmente e a mão esquerda afastava, pelos gestos que desenhava no ar,
sombras invisíveis, fantasmas e receios ancestrais que o açoitavam desde que
apareceu o sonho repetitivo e desvairado, no qual uma serpente inimaginável,
lançava sobre ele línguas bifurcadas que sibilavam de duas cabeças, macho e
fêmea, os netos abandonados, desterrados por sua ordem, filhos de um dos que
viera do mar, e com o qual havia estabelecido pactos de conveniência, solidificados
pelo sangue.
É que tão
cedo a hora da independência se vislumbrara, com o anúncio do fim da dominação
colonial através dos acordos assinados, mandou espalhar pelas aldeias até onde
o seu poder se estendia, que os mulatos teriam que ser entregues ao pai, e as
mães que com eles quisessem ir que partissem.
- Quem
nos trouxe essa gente aqui? – alvitrou, pelos ventos quando percebeu sobre si
olhares duvidosos, interrogadores – Vieram de longe, não fomos nós que os
chamamos, quem fez filho com eles pode ir.
No
recôndito da noite, no catre, a Consciência ainda lhe gritou, ténue, abafada,
sabendo não haver justiça, peso e medida no decreto, só despeito e rancor.
Mas não foram os filhos, foram os pais ou os
avós, os filhos já são nossos!
Achou que chegara a hora de revidar o mal e
humilhações sofridas através dos séculos, quem chega e desrespeita as leis que
encontrou, quem rouba para além do que lhe foi dado, não merece consideração
porque fez-se estranho perante os que os acolheram no regaço dos hábitos e
costumes.
Rapidamente a Emoção investiu, velho ele estaria, mas ainda lúcido.
É o mesmo! O filho sempre defende o pai,
não deixa que te enganem mais uma vez, saíram todos do mesmo ovo.
Em
desespero de causa, agarrada a uma esperança que acreditava poder manter à
tona, a Voz da Razão não se deu por
vencida
Mas o ovo, quem o põe? Sai do pai ou sai
da mãe?
O
Coração, marcado pelo açoites da memória não se condoeu, não poderia haver
espaços para filosofar.
Não
interessa, não interessa.
Sorriu.
Sobrevindo entre os argumentos das duas, e surpreso com os argumentos e contra
argumentos, indagou-se se alguma vez e de igual modo os que lhe roubaram o
poder também teriam sofrido das mesmas culpas.
Juba de
Leão revestiu-se assim da capa dos justiceiros e decretou a lei a ser seguida,
dente por dente olho por olho, sem sequer pensar que o seu sangue escarlate
fluía igualmente vermelho nos netos mulatos, livre, ameaçador e independente
como a independência que chegaria em breve para tudo levar em frente num
cataclismo de formas anunciadas e imprevisíveis.
Não se
sentiu ameaçado perante o desrespeito à tradição, pelo que conhecera dos
brancos tinha a certeza que nunca invocariam antepassados para se vingarem do
gesto de arrogância, da quebra dos valores próprios. Jamais os ouvira ou vira
fazê-lo. Os brancos quando oravam ou imploravam aos do sangue era aos vivos a
quem endereçavam os medos e as angústias. Mas em caso que consultassem seus
mortos, sabia que os mesmos estariam
afastados muito para além das montanhas e das florestas que delimitavam
a sua regedoria, para além dos mares infindáveis que ouvira falar, muito longe
da possibilidade de lhe nublarem a mente e a tranquilidade, seus reinos e leis
sendo de outras naturezas.
- Os
filhos da cobra têm que ir, as mães que os entreguem ao pai. – ditou.
E agora
que os antepassados lhe anunciavam a neta esquecida, Nazamba, amedrontava-se.
Incomodado, tentava ofuscar a memória de Balanta, a filha, a percorrer as vias
poeirentas da aldeia, feita louca, atirando punhados de areia para o ar.
-
Entregar a minha filha no pai? Não é ela dos nossos, não pagaram o meu dote, o
soba grande não recebeu tudo o que pediu, não enterrei o umbigo deles na terra
dos avós?
O povo,
calado, evitava comentar, nem um muxoxo, embora nos olhos de muitos se visse o
desaprovo e a compaixão, não era deles proceder de tal modo, mas não se sabia o
que sonhara ou quem consultara Juba de Leão.
Tantas coisas a acontecer e de maneira tão veloz que lhes ultrapassavam
o entendimento e a aceitação, quem sabe se o branco não voltaria com mais força
ainda, não seria a primeira vez, e quem lhes confirmava que efectivamente
tinham partido? E se assim viesse a acontecer, para eles, que nunca tinham sido
governados por um negro igual, como iria ser? Muitas eram as perguntas, as
grandes fazendas iam voltar às suas mãos, as casas quem ia ficar com elas, os
carros, os médicos quase todos brancos, quem os ia substituir? E os pretos que tinham
feito mal aos seus iguais, o que lhes ia acontecer, agora sem patrões a
controlá-los ou a dominá-los, para onde se viraria sua raiva, como se estava a
virar a raiva do soba grande contra a própria família, o mesmo sangue?
Muitos se
condoeram com Balanta, a filha preferida, da terceira esposa que, para aceder
ao capricho e ambição dele casou com o
homem vindo dos mares, recebida ainda virgem, com quinze anos.
- Levem
os mulatos, levem, esses não são da terra.
Não mais
recordava a partida do genro, levado para Luanda pelas autoridades coloniais e
colocado num avião com destino a Lisboa, temeroso e desnorteado pelo que
acontecia em Portugal e em Angola.
Como lhe
apareciam agora os espíritos da culpa a não o deixarem dormir em paz, a
desenterrarem memórias hereges que pincelavam num quadro que desejava não ter
existido, o momento em que Marcelo, magro e bigodudo, arribara um dia à aldeia, pleno de evasivas?
O
comerciante, nas suas andanças pela região observara um dia a jovem Balanta e
pensou que chegara o momento de resolver a questão da solidão.
Uma preta assim é o que me faz falta!
Homem
branco sozinho naqueles matos cheios de febres não era aconselhável, o último
paludismo que o apanhara quase lhe levara a vida, felizmente que carregava
sempre consigo um frasco de quinino. Chamou o empregado mais chegado, aquele
que lhe servia de um faz tudo e indagou quem era a rapariga. Ficou agradado ao
ser informado que era a filha do soba
grande.
Ainda bem, mato dois pássaros de uma só pedrada!
- O que é
preciso então fazer? – quis saber.
- O
patrão tem que falar com o pai dela, mas é melhor mandar um familiar seu. Se o
soba grande aceitar, tem então que falar com ela, a filha.
-
Familiar meu, não sabes que estou sozinho?!... – retorquiu irritado.
- Então
arranja alguém de sua confiança, posso ser eu. Vou lá e falo com o soba grande,
explico tudo e se ele aceitar, o patrão vai depois falar com a menina para ver
como vão andar as coisas do lado dela.
Até aí tudo bem, mas mandar lá este gajo a
falar por mim é que não estou nada de acordo, acaba por dizer o que não deve e
lixa-me.
- E
depois, o que tenho que fazer depois?
- Se ela
aceitar, tem que dar uma prenda de dinheiro ou um cabrito, ou panos para
mostrar que é mesmo de verdade e que o assunto é sério. Aí, fica já quase família.
- Tudo
isso, tenho que fazer mesmo isso, não chega só pedir a mão e pagar o que
pedirem?
- Dessa
maneira fica mal.
- Fica
mal porquê?
- Nosso hábito...
- Mas vai
já avisando o soba que eu não vou fazer esse casamento com todos as vossas
manias, vai ser casamento de branco, não vou andar aí a pôr esteira no chão,
come isto hoje, bebe aquilo amanhã e não sei o que mais. Dou o dinheiro e vocês
façam lá os vossos ritos e batuques longe da minha casa. E não quero saber de
mais coisas, tudo que tiver que dar vou dar de uma só vez, ouviste ?, que a
família fique bem ciente disso, nada dessas confusões uma semana isto outra
semana aquilo, daqui a uns meses não sei mais o quê e transformam-me a casa em
kimbo.
- É
melhor fazer logo filho, acaba com todas as falações. – aventurou o empregado.
- Isso é
outra coisa, claro que se estou a casar é para fazer filhos. Vai, vai tratar
desse assunto, e nada de falares muito, ouviste?
Passou o
dia em pulgas.
O que o raio desse preto estará para lá a
pintar? Ainda vai acabar por prometer uma data de coisas de que não lhe falei,
ou deitar tudo a estragar!
Mas assim
não foi, o empregado cumpriu com zelo a missão e a resposta foi positiva, o
soba sentia-se muito honrado de poder unir as famílias e teriam que falar em
data a anunciar, mandá-lo-ia chamar.
Durante
umas duas semanas viveu a angústia natural de todo aquele que aguarda pelo que
não sabe quando vem, desmazelando-se nos afazeres, perdendo o gosto pela comida
mal preparada pelos criados e nunca a seu gosto, e quando chegou a ocasião de
se ir apresentar, quis fazer as coisas à sua maneira não obstante ter sido
devidamente instruído para os preliminares e o mínimo de cerimonial a observar.
Todavia,
homem cuja ascendência épica reclamava armas e barões assinalados a partir de
uma ocidental praia lusitana, bem como a edificação, entre gente remota, de
reino que tanto sublimaram, dispensou os salamaleques nativos exigidos e
apresentou-se com uma comitiva e dádivas de impressionar e calar qualquer boca
que se opusesse.
Com uma
estrondosa batucada à frente, que se fazia ouvir a muitos quilómetros, anunciou
a sua chegada majestosa em tipóia coberta e levada por quatro robustos
carregadores. Já não se usava tal meio de transporte há muito, mas sabia que o gesto inesperado e fora do tempo
impressionaria o soba, lembrar-lhe-ia o poder do branco nos tempos anteriores,
e cortaria muita conversa que, para ele, seria fiada. Atrás, uma longa fila de
carregadores e pastores, cada um portador de uma dádiva. Depois de descer, mesmo ainda antes de
cumprimentar o soba grande e futuro sogro, em voz fanhosa devido à emoção,
ordenou que os presentes fossem colocados sobre esteiras já estendidas. Caixas
e mais caixas com sal, sabão, sacos de açúcar, molhes de rolos de tabaco seco,
panelas, copos, talheres e pratos de esmalte pintados de flores garridas, pipas
de vinho tinto, garrafões de aguardente, garrafas de vinho do porto, peças de
panos vários para uso de homem e mulher, iguarias e doces diversos. Os
pastores, previamente instruídos, edificaram uma pequena cerca para onde
remeteram todo o gado, as cabras, os porcos, as galinhas, os patos, enfim, tudo
o que ele pensara que levasse o soba e os seus a aceitarem o seu pedido e, mais
tarde, toda a região a privilegiar a sua casa comercial que, com a união,
acabaria por ser expandida. De seguida,
sem demais protocolos e arroxeado pela aguardente que antes ingerira para
ganhar coragem indómita, por mares nunca antes navegados colocou o interprete a
dizer o que pretendia. Não obstante o insólito, ou talvez por sua causa e
origem, o espectáculo deu resultado e no ano de 1945, combinou-se a data para o
casamento, ficando a tradição pré-nupcial a ser cumprida pela noiva, disso não
abriram mão, branco ou não, ela teria que cumprir com os ritos a fim de que o
matrimónio fosse abençoado e sem impedimentos impostos pela não observância dos
costumes. Ainda assim ele apressou o casamento, e durante longos anos o
matrimónio foi estéril. Sentiu-se culpado, África era uma terra muito estranha.
Será que estas crendices são mesmo
verdadeiras?
Para
se redimir, sentir uma consciência mais tranquila, ordenou que viessem
curandeiros de toda a região que, após longas e onerosas consultas, apontaram
invariavelmente a culpa para a mulher, o eterno pecado de Eva. Manteve a fé e
foram fazendo os tratamentos que lhes impingiram, nunca se ouvindo de sua boca
a exigência do rompimento da união e a devolução do dote, como lhe foi
aconselhado fazer e impor. Por fim Balanta engravidou e Marcelo viu-se no seio e foco de novo
conflito de culturas porque no oitavo mês, apareceram a mãe e tias de a exigir
que o parto decorresse fora da casa, ao ar livre, caso não estivesse a chover.
Tanto se opôs, tanto gesticulou e se enfureceu que, por compromisso, aceitaram
fazer o nascimento dentro de casa, na sala principal. Chegado o momento,
forçaram-no a sair, nem no quarto ou no quintal conseguiu ficar. A sua presença
poderia trazer azares, já chegara a longa gravidez de oito anos, como diziam as
mulheres e o que ele não entendia.
Gravidez de oito anos, estão malucas ou
quê?...
Não o
quiseram em casa e nada as demoveu, a sua presença poderia dar aso a que a
extracção corresse mal, nunca se poderia ter a certeza dele não ter tido ou
mantido relações extra conjugais durante este anos todos. Após o parto, quando
julgava ir encontrar a tranquilidade merecida no lar, levantou-se outro
vendaval porque foi exigido que a esposa ficasse no leito pelo menos uma
semana, e que ele não tentasse impedir porque o amarrariam. Esse era o primeiro
filho e mesmo que não se passasse por isso, era vedado à mulher fazer fosse o
que fosse, não podendo preparar comida, portanto não podendo mexer no fogo.
- Porra,
já chega, amanhã quero toda a gente lá fora, só fica a mãe dela e umas tias,
nada mais, ouviram?
Claro que
ninguém ouviu nem entendeu, aguentou com a casa repleta de mulheres e só não as
correu para fora a pontapé, receoso que alguma coisa lhe pudesse acontecer, por
não estar ainda completamente familiarizado com aqueles costumes e demandas que
achou de estapafúrdias.
Nunca se sabe o que me poderão fazer, diacho
quem me mandou?
Considerou
ser aconselhável ceder, o sogro sempre era o régulo da região e se o mandasse
amarrar ou qualquer outra coisa, o que fazer, quem culpar? Não poderia
apresentar queixa, sabia que resposta o chefe do posto lhe daria.
Quem o mandou meter-se com essa gente, não
poderia ter mandado vir uma mulher lá da sua terra, agora aguente-se?
Mas jurou
que para os próximos partos, nem que tivesse que levar a mulher para outro
sítio, haveria de estar presente um médico ou uma parteira reconhecida. Ao
perfazer o terceiro ano, Marcelino, o filho, morreu mordido por uma cobra
quando brincava num canto do quintal onde se amontoava a lenha, junto ao
bananal. Teve que lutar, não quis consultar adivinho nenhum para saber quem
enviara a cobra e porquê, teve mesmo que ser rude e afirmar que não queria
meter-se nessas coisas, quem brinca com o fogo sempre se queima, e que se o
filho morrera dessa forma, é porque o destino assim escrevera na sua página da
vida. Por o morto ser uma criança, não lhe cobraram as exigências devidas,
todavia Balanta desapareceu por um mês, regressando muda sobre onde estivera e
o que fizera. Marcelo, complacente, intuindo que muita coisa teria que aceitar
e tentar compreender, nunca mais falou na questão.
Seguiu-se
Cecília, nome que a todos fazia rir pois ninguém o pronunciava
correctamente a não ser o pai, ficou conhecida por Xila enquanto viveu. A
febre tifóide levou-a. Anos depois, vieram Nazamba, nascida em Dezembro de1962
e, dois anos mais tarde, Tomás, os únicos que medraram com força.
Sobressaltado, Juba de Leão deu um safanão involuntário na cabaça da
cerveja de milho e voltou a dormitar na benévola nuvem de oblívio que a bebida
proporcionava. Contra a parede mais cerca, e ao alcance da mão, uma velha
bengala de madeira que ostentava no cimo uma cabeça dobrada de cobra, o cabo de
rabo de boi e o chapéu emblemático do poder, feito de ráfia. Era o que sobrara
de uma vasta memória de poder ao longo de anos infindos, transmitida através da
linhagem.
Um vento
tímido penetrou pelas frestas de uma pequena janela, e reavivou as débeis
chamas que iluminaram o interior. Fiapos
de fumo esvaíram-se, ténues, pela porta, perdendo-se no cinzento da tarde.
Acordou
pouco depois com a algazarra da criançada na apanha do salalé que gorgolejava
pelos buracos da terra húmida e fumegante. Esfregou os olhos para afastar as
imagens dos sonhos. Concentrou sua
atenção nos sons que lhe chegavam. Sentiu a falta do fogo a arder, avivou as
brasas com a bengala e perscrutou à
volta o lugar onde os ramos secos de madeira e gavinhas amontoavam. Cerrou os
olhos a fim de poder discernir a vida lá fora e só então notou que a chuva
parara. Quis levantar-se, todavia o
corpo não respondeu. Puxou com a bengala uma brasa acesa, que acabou por
agarrar com a mão, e colocou-a na boca da mutopa, reavivando a mistura de
tabaco secado e liamba. O calor do fumo penetrou pela garganta e aqueceu-lhe o
peito, para se transformar na tosse antiga e seca.
Sempre
gostara da chuva, não só por ser anunciadora de fertilidade e de bonança, como
igualmente por confirmar as benesses dos antepassados para com a aldeia e o
vastos clãs que há muito comandava. A chuva era a mãe da natureza, era ela que
emprenhava a terra e fazia brotar a vida, vira vezes sem fim o milho e a massambala a crescerem espigados, até às
colheitas. Com tristeza, recordou os tempos de antanho do soba grande, seu avô,
e mais tarde do soba grande seu tio, em que observara as primeiras colheitas a
serem-lhes levadas para que se cumprisse o rito da sua distribuição aos
antepassados, e só depois ser permitida a colheita de todo o resto. Ele
próprio, Juba de Leão, raramente, para não dizer nunca, executara esse ritual,
assim como muitos outros, já perdidos no decorrer das luas imemoráveis.
Ganhara o
nome quando, homem feito e robusto, numa luta que quase lhe levara a vida,
matou milagrosamente um leão solitário, ao atravessar-lhe o coração com a
azagaia. Seriamente ferido, foi tratado pelos curandeiros da região e por um
enfermeiro filho da aldeia que trabalhava no posto administrativo, a dois dias
de viagem. Recomposto, sua fama espalhou-se pelas regiões vizinhas, sobretudo
quando o chefe do posto, sem se fazer anunciar, apareceu a cavalo para render
homenagem ao chefe preto que matara o leão com uma azagaia, conforme ficou nos
registos orais do povo.
Alquebrado, tudo lhe pareceu tão longe e irreverente. Perdera o gosto
pela vida e alienava-se no fundo dos sonhos que a mutopa lhe proporcionava,
mundo esse em que a mente não era invadida por lembranças bolorentas e
humilhantes. Aí, não existiam invasores oriundos do mar que derrotaram seu tio,
seu avô e os que lhes precederam. Seres poderosos que lhes roubaram os filhos e
mulheres, enviando-os por mares longínquos e estranhos, se apossaram das
melhores terras, onde construíram fortes, povoações comerciais, fazendas. Não
havia, nesse mundo onírico de fronteiras infindas e amorfas, chefes de posto e
administradores para lhe imporem, a ele, Juba de Leão, leis desconhecidas e o forçarem
a despachar o seu povo longe, para o trabalho forçado. Não se manifestavam os
desenganos da independência que ele vira chegar tarde, e pela qual aguardara
com fé e afinco. Aí, onde tudo era calmo e tranquilo, onde nada o perturbava
porque etéreo, não se consumia na luta fratricida que lhe destruíra várias
vezes grande parte da aldeia, o remetera para exílios vários e, uma vez
recuperada a zona, o regresso a um presente nebuloso no qual perdera ainda mais
a autoridade e a firmeza das convicções. Não dava conta, nesse mundo diáfano,
que não era ele quem mandava, mas sim as diferentes tropas que por lá passavam
e que lhe violaram as mulheres e lhe levaram a pouca comida e os mancebos,
quando e como bem queriam. Como fizera seu neto Tomás, numa manhã de cacimbo,
ainda o dia não nascera, irrompendo violento pela aldeia adentro, a gritar pelo
seu nome, só por milagre não o encontrara e raptara.
Quanto partiu, bem antes que as tropas do governo
chegassem, pouco da aldeia tinha ficado de pé. Espalhados por todos os cantos,
cinzas, corpos de pessoas e animais carbonizados, e o grito reverberado
terrível do ódio colado à pele das árvores, embrenhado no visgo que delas
gotejava, embebido nas gotas do orvalho e do sangue que escorriam para o mesmo
charco lamacento, onde os porcos já chafurdavam.
Pousou o
cachimbo no chão e puxou uma velha corda, com força. Fora, sob o capim do
toldo, ouviu-se o badalar roufenho de um pequeno sino. Uma figura masculina
pronto se desenhou no pórtico e aguardou.
- Manda chamar o meu
irmão Nehone. - disse, abstracto.
- Sim, senhor! - respondeu o jovem,
retirando-se.
Nehone
era um dos muitos dos seus irmãos e que soubera insinuar-se junto do soba
grande. Homem ambicioso, apoiara sem reservas Juba de Leão nas várias quezílias
e lutas para a manutenção do poder, gerindo os assuntos correntes como um
primeiro ministro. O soba grande concedera-lhe plenos poderes e reservara para
si a administração das grandes causas da justiça e da moral, bem como a gestão
dos ditames do mundo invisível. Era o juiz e o sacerdote, há muito que se
fartara do dia a dia administrativo
O
temporal desabou novamente sobre a aldeia e sentiu-se reconfortado. O que tinha
a decidir, teria mais força para medrar com a chuva caindo, auspíciosa. Olhou
pela porta aberta e conseguiu perceber apenas o cinzento da água a rolar com
violência, batucando surdamente na terra. Uma felicidade, que há muito não
experimentava, invadiu-o, fazendo-o sentir-se rejuvenescido e esquecer a neta.
Levantou-se com dificuldade para ensaiar em agradecimento uns passos de dança.
Trôpego, quase se estatelava, não fosse a mesa tosca em que se apoiou. Com um
sorriso de condenação própria, sentou-se e bebeu da cabaça.
-Pensas que ainda és
novo? - disse, em
condescendência.
Na porta soaram umas batidas secas e Nehone
foi anunciado.
- Entra, sai da chuva. - disse o velho soba.
Nehone
entrou, inclinou-se, levou as mãos ao peito e manteve-se calado. Com a bengala,
Juba de Leão indicou-lhe um banco para se sentar. Olhou-o longamente e concluiu
que Nehone sempre o servira com denodo, nunca o questionara e impusera a lei
com firmeza, todavia de forma justa. Já nem se lembrava de que mãe é que ele
era filho, tantas esposas tivera seu pai. Tinha ciência de que era um dos seus
irmãos mais novos e, erradamente, pensou com idade de ser seu filho. Quando
agarrou de novo na mutopa, num faiscar da memória recordou-se que Nehone era
filho de Teka, uma das últimas mulheres do seu progenitor. Sorriu e gritou para
o servente que certamente estaria na porta, meio abrigado da chuva, para lhe
trazer mais uma cabaça de bebida.
- Esta chuva é boa... - disse, quase falando
para si mesmo.
- É verdade, senhor. Com
ela vamos ter boas colheitas. Vai é estragar o trabalho que estávamos a fazer
na estrada. - respondeu Nehone,
sabendo que havia uma razão para ter sido chamado e que teria que haver toda
aquela conversa antes do soba chegar ao assunto principal.
A estrada
que estava a ser construída, era o alargar da picada antiga, que iria permitir
o acesso de viaturas de maior porte, para benefício da região. Levara-lhe anos
a convencer as autoridades administrativas locais que, por fim, concederam-lhe
alguns meios quando se começou a falar de guerrilha e bandidos vindos da Zâmbia.
A mão-de-obra era da aldeia principal e Juba de Leão esperava que, depois, a
estrada não servisse par fins militares.
Ao bater
de palmas o soba mandou o servente entrar. Este ajoelhou-se, mantendo a cabeça
baixa, e colocou a cabaça aos pés do velho, após ter bebido um pouco do
conteúdo à frente dos irmãos. Aguardou, por uns instantes.
- Podes ir, vai para o
fogo na tua cubata. - despachou-o, com um sinal da mão.
Quando o
jovem saiu, Juba de Leão colocou a mutopa no chão, agarrou na cabaça bebeu
longamente e limpou os lábios com as costas da mão. Em gestos lentos, passou-a
a Nehone que o imitou, colocando depois a cabaça aos pés do soba grande. Pela
primeira vez, talvez pelas sombras avermelhadas que as acanhadas chamas do fogo
lançavam na cara do irmão mais velho, deu-se conta do quão gasto e abatido este
se mostrava. Manteve, de soslaio, o
olhar e tentou adivinhar a razão para a qual o velho soba o convocara sob uma
chuva torrencial. Se o chamara com tanta pressa e naquele momento, é porque a
questão a ser tratada tinha inicialmente a ver com chuva, o aguaceiro
despertara uma qualquer emoção ou lembrança, e se tinha a ver com chuva, tinha
a ver com vida, com renovação, e não com desgraça ou morte. Ao dar conta da constatação estremeceu e veio-lhe
ao pensamento, como o estampido de um trovão, que fora chamado para tratar de
assunto ligado à sucessão, o velho já por duas vezes lhe dera a entender, de
maneira bastante sub-reptícia, que havia mudanças a fazer. Agora, media o
alcance das afirmações. Sem querer, a sua respiração tornou-se ofegante e o
peito arfou involuntariamente.
Mas o meu coração tem que me trair assim
porquê?
- Que foi? - perguntou-lhe Juba de
Leão.
- Nada, senhor. É a
bebida, está boa. - respondeu envergonhado por não se ter controlado.
Com as
emoções a dominá-lo, olhou com gratidão para o irmão, nunca duvidara da sua
nobreza e rectidão.
Quem planta sempre colhe, o velho também
sabe disso.
Chegara a
hora de este lhe retribuir os longos anos de lealdade explícita, de admitir que
uma mão lava a outra e ambas a cara. Foram décadas de dedicação, às vezes de
negação por nem sempre estar de acordo com esta ou
aquela acção que lhe fora incumbida, era pois mais do que justo o
reconhecimento de Juba de Leão. Comovido, baixou a cabeça para controlar
lágrimas que, empurradas teimosamente do coração, batalhavam para não
permanecerem em seu esconderijo.
Kalunga, ajuda-me então, não me vais fazer
fraquejar como uma criança!
- Esta bebida tem fogo. - disse, a pigarrear,
para disfarçar.
- É verdade, está boa,
fermentou bem. Fuma também a mutopa – respondeu Juba de Leão.
Fumar a mutopa, eu ?... Vai fuma, fuma, não
lhe desagrades.
- Só um
pouco...
Nehone
não era afoito nem ao tabaco nem à liamba, mas para não ofender o irmão,
agarrou no cachimbo e puxou duas baforadas, que o fizeram tossir, engasgado.
Juba de
Leão olhou para ele e caiu no riso, revelando uma boca falha de dentes. A
fragilidade do irmão mais novo perante o fumo espantou-o e, pela primeira vez,
deu conta de que nunca antes o vira fumar.
- É verdade, nunca te vi fumar, tinha-me
esquecido.
- Não é nada. – disse, quase
lacrimejando – Engasguei-me no fumo.
A chuva
amainou e a trovoada deslocou-se para o norte. O céu clareou o suficiente para
deixar penetrar na choça a luz mortiça do fim da tarde, mas todos sabiam que
durante a noite o aguaceiro desabaria de novo. As aves mantiveram-se recolhidas
nas árvores, sem piar, e as galinhas mais atrasadas encaminharam-se para as toscas
capoeiras. Percebia-se o ocasional balido de um cabrito, certamente procurando
a teta da mãe para a derradeira refeição do dia.
- Nunca mais tivemos
notícias do meu neto Nataniel, já esqueceu a aldeia. - disse Juba de Leão.
Nehone
tranquilizou-se quando viu as suspeitas confirmadas, o velho desejava falar
sobre quem lhe sucederia. O que diria ao soba grande quando este lhe informasse
que desejava indicá-lo ao conselho, para sucessor?
O que vou falar? Só agradecer?...
- Não é nada, vai ver.
Os nossos quando vão nas cidades grandes esquecem o que ficou para trás. - respondeu lesto, para
o alegrar.
- Mas mesmo Nataniel, já
senhor doutor e general no exército? Esse filho não nos pode esquecer. - respondeu o soba,
resvalando para a tristeza.
Nehone
sabia que Nataniel era o neto preferido de Juba de Leão. As autoridades da
província, para agradecerem ao velho a lealdade ao governo, enviaram o neto,
ainda jovem, para fora, de onde voltara formado em medicina. Pronto o
integraram no exército, deram-lhe, algum tempo depois, a patente de major pela
dedicação e desempenho nos postos médicos das frentes de batalha. Regressado à
capital, foi colocado no Hospital Militar com um futuro promissor por ser
trabalhador, competente, e por todos estimado, dado o seu trato afável. Na
aldeia, só podia ser tratado por doutor ou general, já que Juba de Leão não sabia qual a patente
que vinha primeiro e não desejava mostrar o seu desconhecimento. General era posto
alto, há muito que o reconhecera.
- Senhor, os afazeres na
capital são muitos, e a vida é outra. Nataniel é pessoa importante, mas nunca
esqueceu os seus.
- É verdade, é um bom
filho, mas estou preocupado. Estou velho...
- Velho,
qual quê, ainda aguenta muito bem. – respondeu Nehone
- Pode
ser, pode ser, mas estou cansado, o tempo passa.
Nehone
sobressaltou-se de novo. Esperou que o velho não tivesse notado, não queria
revelar ansiedade. Pressentiu que a conversa estava a ser encaminhada para o
anúncio que aguardava.
Fica calmo, fica calmo, controla-te!...
Acabara
por escurecer por completo e reavivou o fogo. Com os gavetos secos, as chamas
elevaram seus bailados serpenteando nas sujas paredes do interior da cubata.
Olhou-as fixamente, como que hipnotizado, vendo nelas as frustrações que
sentira ao longo da vida, formas desconjuntas, desmembradas numa harmonia de
movimentos que mais lhe pareciam o cavalgar desordenado de um rebanho de
gazelas, pelas planícies do pensamento.
- É verdade, o tempo
passa. - Nehone não sabia
verdadeiramente o que dizer.
- Estou como aquele leão
que matei, só que ele tinha dentes e eu não.
- Senhor, não diga isso.
O leão ainda era forte, nós vimos.
- Sim, vocês viram, mas
quem lutou com ele fui eu. Era já um leão velho, solitário como me sinto agora,
qualquer um o vence. - respondeu, completamente invadido pela tristeza que a lembrança e a
ausência do neto produziram.
Calou-se
e coçou um pé no outro, talvez recriando a cena da luta, já que um esgar de
sorriso permaneceu esboçado nos lábios semiabertos.
O leão,
velho e doente, quiçá cheio de fome porque já não mais caçava, atirara-se a
ele, julgando a presa humana mais fácil. Mas mesmo assim, teve sorte em ter
saído com vida. Não fora a azagaia que mantinha firme na mão e sobre a qual a
fera caíra quando se encontrava derrubado no chão, o que teria sido dele?
Deixara que a história ganhasse proporções mais largas porque lhe interessara,
conferia-lhe estatura e grandeza. Até o homem branco que mandava, para lhe
roubar mais gente para as plantações, viera a cavalo, fingir que lhe rendia
homenagem pelo feito. Todavia agora, tudo lhe parecia distante e sem
importância. A caricatura de sorriso, murchou por completo nos lábios.
Nehone
desejava compartilhar a tristeza do velho, porém preferiu não se
manifestar. Não conseguia ler-lhe o
coração, escolheu não arriscar, o momento era delicado. Manteve-se a olhar
timidamente de soslaio, tentando não esfregar a comichão que se instalara nas mãos,
para não revelar nervosismo. Sem saber porquê, teve vontade de rir.
- O meu
neto, o nosso filho, tem que vir, a cidade não é boa, estraga os costumes. Olha
só na tropa e vê se esses miúdos respeitam mais a gente.
- Assim
é, mas o que podemos fazer? Eles é que fazem a guerra. - respondeu Nehone.
- Mas
Nataniel não.
-
Nataniel é médico, senhor. Ele cura a vida, não a tira.
- Ficou
muitos anos fora, mas é o orgulho nosso. Nunca antes tivemos um filho tão
importante.
- Lembras-te
do comandante Paulo, que o levou para Cuba? – perguntou Nehone, tentando
adivinhar o pensamento do irmão.
- Então
não lembro, o nosso compadre o camarada Pablo?... – respondeu Juba de Leão,
mais animado.
- É
verdade, ainda me pergunto por onde andará hoje? - Insistiu Nehone.
-
Certamente que o Nataniel sabe, temos que o consultar.
Por uns
momentos alegrou-se. Endireitou o corpo e olhou longe, como que vislumbrando
através da noite e da intempérie, o futuro brilhante de Nataniel como homem
culto e sabido, com fama expandida pelo país, toda a gente devendo-lhe favores,
uns, porque curou, outros porque salvou a vida, mais ainda, porque sendo
pobres, os tratou de igual modo.
Porém, o
ribombo do trovão que os ensurdeceu momentaneamente, trouxe-o, sobressaltado,
de volta à cubata e à realidade. Com um longo suspiro deixou pender a cabeça
para o peito e, alquebrado, começou a chorar, quietamente.
Nehone
assustou-se.
Será que pressentiu a morte e chamou-me para
despedir-se?
Boquiaberto, não conseguiu acreditar que o ancião chorava efectivamente
e amedrontou-se por ter sido obrigado a testemunhar, pela primeira vez, o sinal
de fraqueza no soba e seu irmão mais velho. Olhou-o de frente, e o que viu
revelou-lhe a certeza de que ele perdera a vontade de governar e de viver. E,
numa explosão mais forte ainda do que o trovão, deu conta de que o sucessor que
desejava apontar era Nataniel, o neto deles. Juba de Leão carpia porque tinha a
convicção de que os desígnios por si traçados não frutificariam. O neto não
aceitaria deixar a capital e viver as vicissitudes do campo e da vida
tradicional amarrada a preconceitos antigos e cada vez mais em desuso e em vias
de desaparecimento natural. Sobretudo não se submeteria a uma vida rude, de
incertezas, que, em comparação à vida da capital era um simples desassossego.
Pressentia que o neto recusaria o que, ao ser conhecido, desencadearia
fricções, as leis da sucessão, se é que ainda existiam, não eram bem delineadas
e seguidas como no passado do seu tio e do seu avô. A maioria dos sobas fora
indicada pelos governos, tanto o colonial quanto o nacional, através de uma
qualquer repartição ou de um qualquer ministério, ele nem sabia como nem porque
razão, qual era soba, quais eram os sekulus. As lágrimas eram o canto do cisne
das aspirações há muito torneadas em sua mente e coração.
- O nosso
neto não vai aceitar. – Falou alto para consigo próprio.
Uma raiva
surda amotinou-se, agigantada e em rompante pelo peito de Nehone.
Eu que
estou aqui e ele vai buscar tão longe, na cidade?...
Confirmado que o velho pretendia o neto, descobriu com ciúme e inveja,
não a inveja de talvez nunca vir a aceder ao cargo, mas a inveja da rejeição, a
traição que se impôs-se a si próprio, já que nada lhe houvera sido prometido em
tempo algum. Erguera essa vaidade, sem qualquer indício de apoio ou cogitação
alheia.
Eu que te servi toda a vida...
Levantou-se sem pedir licença. Entrado em idade, aprendeu que a lealdade
não se paga ou circula de igual modo entre quem a recebe e quem a oferece. Pela
sua experiência, devia ter suspeitado que o poder e a lealdade são pesos e
medidas diferentes. A quem ela é
exigida, aconselha-se unicamente a
percepção da sua utilidade, não da retribuição do seu valor.
- Não posso ver o meu
soba a chorar, vou sair. - desculpou-se.
Juba de
Leão não se moveu, o que tolheu Nehone. Fixou o irmão até este reagir, uma
eternidade, pareceu-lhe.
- Senta-te, a conversa
não acabou, temos muito para decidir. - respondeu, de maneira seca e altiva, já recomposto.
Agarrou
na bengala numa mão e no cabo do rabo de boi na outra, com o qual vergastou
três vezes o ar, em raiva surda. A cada uma das zurzidelas, o estampido seco
aferroou-se na mente e nos medos mais íntimos de Nehone. Sem notar encolheu-se
e Juba de Leão sorriu, ciente de que restabelecera a autoridade e de que aquilo
que o irmão testemunhara dali não sairia, o momento de fraqueza e de desalento
tinham sido banidos para longe. Nehone sentou-se de imediato, e baixou a
cabeça. Estabelecida a harmonia do poder, com a mão que segurava o cabo,
agarrou na cabaça da bebida e estendeu-a, não com magnanimidade mas com amizade
e suavidade.
- Bebe, para aclarar as
ideias. Este meu coração está a ficar fraco, como o de uma mulher- concedeu
esta desculpa ao irmão.
Nehone
recebeu a cabaça, da qual bebeu, mais para abafar o rancor do que para agradar
ao velho. E se se levantasse e afirmasse que não o permitiria, que levaria a
questão ao conselho dos anciãos, aos curandeiros e adivinhos? Pronto morreu
dentro de si a ideia. Olhou para Juba de Leão e suspirou fundo, parecendo
resignado.
Nataniel não vai aceitar, não vai querer
abandonar Luanda. Quanto a ti, espera e tem calma, aguenta os ventos até o
momento chegar.
O soba
grande chamara-o para consultas, e ele, incapaz de ler-lhe a alma, atrevera-se
a conjecturar, numa vaidade justificada, a sua ascensão, elegendo-se por
antecipação. Bebeu, sôfrego, até quase esvaziar a cabaça, sabendo que contra
Nataniel seria difícil lutar, caso o velho levasse adiante a sua ideia. Era o símbolo de prestígio do grande sobado,
médico e militar, com um vasto horizonte à frente. Percebeu que o velho detinha
os trunfos, pouco lhe valeria no concelho de anciãos opor-se, todavia não
desistiria, ainda tinha cartas guardadas na manga que, com paciência e
habilidade, lhe proporcionariam a estocada final.
Bebe mais um bocado para ganhares calor!
Agarrou
na cabaça e esvaziou-a. O irmão olhou para ele, surpreso, e escancarou a boca
num sorriso enigmático.
Já deve estar a ver se me engana...
- Cuidado, não bebas tudo...
Nehone
aventurava que talvez conseguisse, ali e agora, mudar-lhe as ideias,
fazer-lhe ver que o neto seria muito
mais importante na capital, quem sabe um dia até poderia ser ministro da saúde,
general, mesmo ministro da defesa, até presidente. E caso isso acontecesse,
então o sobado seria muito melhor servido, Nataniel teria a estrutura central
do poder para fazer avançar a região. Seria por esse ângulo que teria que
convencer os anciãos, desejar algo muito mais elevado para o sobrinho e
convencê-los que a vontade de Juba de Leão era válida e nobre, mas pecava por
miopia e timidez. Iria provar-lhes que o grande soba já não ousava, perdera o
instinto de caça, a noção da realidade e, pior do que tudo, preconizava o laxar
da tradição, não queria seguir as leis antigas que levaram a que ele fosse
escolhido para dirigir. Tentaria dividir o mais que pudesse, para conseguir
impor os seus desígnios
- Estou velho, preciso
ponderar. - continuou o soba.
- Senhor, ainda falta
muito para esse dia.
- Agradeço as tuas
palavras, mas chegou a hora de pensarmos em quem vai tomar o meu lugar.
Mas quem mais te deveria tomar o lugar?
Juba de
Leão não tivera irmãs, só ele, Nehone, filho de Teka, que verdadeiramente
organizava e conduzia o dia a dia do sobado, sobretudo nos últimos anos em que
a mente e acção do ancião começavam a dar mostras de caducidade.
- Não há pressa, senhor.
Isso pode desencadear lutas, há muitos sobrinhos, disse-lhe para lhe fazer
relembrar a tradição.
- Não haverá lutas
nenhumas. Ninguém luta contra o leão, ele é o mais forte e o mais esperto. - retorquiu zangado Juba
de Leão. – Acabaste com a bebida,
Nehone
baixou a cabeça e recuou. Não era a altura. Levantou-se, dirigiu-se à porta,
gritou pelo moleque e, quando este chegou, pediu mais cerveja.
A chuva
redobrou e o cheiro da terra molhada penetrou novamente na cubata. Chuva
abençoada que a todos alegrava. Na manhã madrugadora, ouvir-se-ia a natureza a
estrepitar na terra húmida através do rostulhar das folhas e gravetos
movimentados pela correria dos insectos vários, dos milipés, centopeias, ratos
e lagartos. Quando o sol rebentasse, uma densa neblina vinda das entranhas da
terra, em ascensão esbater-se-ia pelas copas das árvores, deixando no ar um
odor penetrante de mofo e ranço.
Pelas
frestas das cubatas, para quem olhasse, percebiam-se os reflexos dos fogos a
tremelicar e as conversas abafadas. Em todas elas especulava-se sobre os
motivos da conversa dos irmãos, mesmo sob uma chuva torrencial e a horas que
escurecera. A noite é para os feiticeiros, não para pessoas tratarem de
questões, sejam elas quais forem, portanto coisa boa não deveria ser
- Não será melhor
deixarmos esta conversa para amanhã, quando a chuva passar? - solicitou Nehone.
- Estás com medo da
chuva, ou é o teu pensamento que te está a comer? - retorquiu com
violência o soba.
Levantando-se de um pulo, Nehone viu, ou pensou ver, aterrorizado, um
raio varar a cubata, atingir o velho no peito e saltitar pelas quatro paredes
da casa, saindo por onde entrara. Gritou apavorado, grito que só ele ouviu.
Estonteado, caiu contra a tosca mesa.
Juba de
Leão, de pé, saracoteava frenético à
frente do irmão, o cabo do rabo de boi levitando no ar sobre sua cabeça em
igual frenesi, da boca escorrendo palavras ininteligíveis que, ao ecoarem nas
brasas sobre as quais agora dançava, compunham
a melodia dos gestos que grotescamente esboçava pelas paredes da choça
em sombras fantasmagóricas.
Com a
cabeça a rodopiar, Nehone foi-se encolhendo até sentir-se do tamanho de uma
lagarta e teve a impressão que o coração parara de bater, ou martelava em suas
têmporas no latejar surdo dos tambores que ecoavam bem dentro de si.
Kalunga, Kalunga todo poderoso, salva-me do
poder deste homem!
Uma luz
esbranquiçada, que conferia uma aparência diáfana, irradiava do corpo suado do
velho. A porta da choça entreabriu-se com o vento e o braseiro reavivou-se em
chamas, como se alimentado por ramos e gravetos secos, no seio das quais o soba
dançou por momentos que pareceram uma eternidade. Quando Juba de Leão caiu de
barriga no solo, exausto e em completa imobilidade, a chuva cessou mansamente.
Nehone
não ousou mexer-se.
O meu irmão é feiticeiro. O soba grande é
feiticeiro!
As
palavras pensadas martelavam reverberantes em sua mente, apregoando a aparência
evidente para a lonjura do infinito.
O meu irmão é feiticeiro, ele é um grande
feiticeiro!
Observou
o corpo inerte do velho até sentir que este vivia. Só então ganhou coragem
suficiente para se levantar e aproximar-se. Apalpou-se várias vezes, não se
sabia se a sacudir a poeira ou a verificar se estava ali em carne e osso. Ao
olhar para o esgar talhado na cara do soba, recuou assarapantado. Tremeu de
medo, um medo ancestral, e não soube o que julgar. Pela mente viu-o feiticeiro,
pelo coração sentiu-o sobrenatural, e pela alma, juraria que era divindade
poderosa de reino tão tenebroso e medonho que nem arriscava sequer pensar no
nome. Viria das profundezas da terra, o senhor da morte e do mal. Benzeu-se e,
com o dedo, célere, fez a cruz três vezes no chão, à medida que cuspia outras
tantas.
Em nome do pai, do filho e do espírito
santo.
Juba de
Leão virou-se, pesado, e pediu a Nehone, em voz cansada mas tranquila, que o
ajudasse a levantar-se. Com muita relutância, Nehone colocou-o na cadeira,
tendo ele logo procurado com os olhos a cabaça da cerveja de milho, que caíra
sobre o catre onde dormia, mas não fez esforço para a solicitar. O silêncio
reinou por um longo período.
- O meu neto terá que
ser chamado, os antepassados querem que ele ocupe o meu lugar.
Nehone,
que só deseja abandonar a cubata, não soube o que responder. Nada ali lhe
demonstrara que os antepassados tivessem falado, aliás nem os ouvira, mas
alguma força ainda o retinha pregado ao lugar para onde recuara. Acreditou ter
gesticulado e pareceu-lhe ouvir saídas da sua boca palavras que não eram fala
coerente, mas efectivamente suas.
- Rohnes em-etimrep rias
rop rovaf!
- O que disseste? - Perguntou o velho, a
rir.
- Ojesed em-ri arobme,
outse odasnanc, eved ret odis a avuhc, uem oproc iòd.
O soba olhou
para ele, boca aberta num sorriso como se já tivesse visto a cena centenas de
vezes. Estava a medir-lhe o medo. Ergue-se penosamente, pedindo com o gesto a
bengala que voara contra a pequena janela de madeira. Quando Nehone,
mesmerizado, a entregou, Juba de Leão colocou-lhe a mão direita na cabeça e
pediu-lhe para se controlar, para cessar de tremer feito uma donzela em momento
de núpcias. Mandou-lhe abrir a boca e com os dedos enfiados pela goela, num
gesto brusco, sacou-lhe o terror que o fazia falar coisas estranhas, fechando-o
na palma da mão. Riu, gargalhadas esdrúxulas, os dentes falhos fazendo
sobressair o que parecia desvario. Lentamente, levou as frases aprisionadas na
palma da mão aos ouvidos do irmão e sibilou:
- Escuta. Escuta o teu
pânico, como ousas querer suceder-me?
Nehone
ouviu sua própria voz brotar da palma côncava da mão do velho:
- Senhor,
permite-me sair.
Esforçou-se para fugir mas as pernas negaram-lhe a vontade. Caiu de
joelhos, sem forças para se sustentar e temeu por sua vida, as palavras do
irmão ricocheteavam na mente.
Como ousas querer suceder-me?
Desejou
pedir-lhe perdão mas a fala não se
materializou. Baixou a cabeça, ciente que o soba grande era duende poderoso que
o levara a falar ao contrário. O ódio avultou-se-lhe no coração e teve intenção
imediata de o matar, ali mesmo, todavia apenas o eco saindo da palma côncava da
mão de Juba de Leão:
- Desejo
ir-me embora, estou cansado, deve ter sido a chuva, meu corpo dói.
Juba de
Leão retirou a mão do ouvido de Nehone que, ao reconhecer o sentimento de
cobardia no que antes dissera de maneira ininteligível, caiu de borco no chão,
desmaiado.
O velho
pressentiu que havia gente junto à porta, dois ou três mais ousados que, não resistindo
à curiosidade, e com o cessar da chuva, se haviam aproximado cautelosamente
para tentar ouvir ou ver o que se passava.
- Venham retirar este
homem daqui e levem-no para a sua casa. - gritou.
Ouviu os
passos abafados de retirada precipitada. Sorriu e fez soar o sino. Escassos
momentos após, apareceu o jovem servente que, receoso, pediu autorização para
entrar. Vendo o soba de pé e o irmão prostrado a seus pés, sentiu um frio
gélido penetrar-lhe os ossos. De olhos esbugalhados, recuou a bradar pela aldeia.
- Ai
minha mãe, minha mãeeee, manhéééé...
As
pessoas acorreram à choça do soba aos gritos, o curandeiro à frente, pensando-o
morto.
Penosamente, deslocou-se para a entrada e olhou para eles, desdenhoso e
desafiante.
- Quem morreu? - perguntou numa voz
roufenha.
Todos
pararam num silêncio absoluto. Uns, envergonhados. Outros, receosos. Foram
recuando aos poucos. O velho observou-os por uns instantes e depois, apontando
o dedo para Tuluka, o mestre curandeiro, ordenou-lhe:
- Entra, o mestre
conselheiro adoeceu. Os outros podem regressar às vossas casas.
Virou-lhes as costas e arrastou-se para dentro, logo seguido de Tuluka.
- Fecha a porta. - Comandou, enquanto se
sentava.
O
curandeiro olhou para Nehone, que continuava inerte onde tombara.
- Teve medo, os
antepassados falaram. - Disse o soba, com altivez, mentindo.
- Vou buscar as coisas e
o ajudante. - Retorquiu Tuluka,
retirando-se lesto.
Juba de
Leão procurou pelo cachimbo, renovou a liamba e colocou-lhe uma brasa em cima.
Sentou-se, mais reconfortado. Chupou com avidez, tossiu várias vezes e escarrou
para o chão, limpando a boca com as costas da mão. Pronto a cabeça pendeu-lhe
para o peito e caiu num profundo sono.
Quando o mestre
curandeiro e o ajudante entraram, após terem batido três vezes as mãos e não
obterem resposta, colocaram-no no catre, sobre um cobertor velho e mal
cheiroso. Procuraram por um pano e taparam-no, sorrindo em aprovação do estado
em que se encontrava. Tuluka agarrou no cachimbo, fumou pausada e longamente,
enquanto o ajudante preparava as coisas para iniciar a sessão.
Os
antepassados haviam falado, dissera o soba, caso fosse verdade, logo saberia o
quê.
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