Jurema
Oliveira - Professora da Universidade Federal
do Espírito Santo na área de Teoria Literária e Literaturas de Língua
Portuguesa, Pós-Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense Uff, desenvolve pesquisa na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa
Resumo: Depreender na literatura
angolana as vertentes da ficção insólita contemporânea.
Palavras-chave: tradição, oralidade
e insólito
O corpo é ao mesmo tempo o ponto de
partida, o ponto de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as
dimensões do mundo (ZUMTHOR, 2000, p.90).
O presente trabalho tem por
objetivo discutir as vertentes da ficção insólita angolana. Para esse estudo
escolhemos as obras dos autores (…) e Fragata de Morais.
… Fragata de Morais escreveu Como Iam as Velhas Saber (1983, A Seiva (1995), Jindunguices (1999), Momento
de Ilusão (2000), Amor de Perdição,
Antologia Panorâmica de Textos Dramáticos
(2003), A Sonhar se Fez Verdade
(2003), A Prece dos Mal Amados (2005), O
Fantástico na Prosa Angolana (2010) e
Batuque Mukongo (2011).
O
século XX presenciou modificações históricas importantes no cenário mundial e
em particular nos países africanos de língua portuguesa. O fenômeno violência
nasce do desejo de dominação de um homem sobre todos os homens, mas, de acordo
com Hannah Arendt, a violência destrói o poder, não o cria. Em contrapartida,
as ações violentas fazem emergir no cenário social experiências insólitas, não
habituais do ponto de vista cultural. A violência neutraliza toda e qualquer
possibilidade de os homens se organizarem e viverem em harmonia e
consequentemente abre espaço para o luto visível nas imagens refletidas num
espelho d’água embaçado. Estes fatos constituem o móvel, os eventos
sustentadores do gênero insólito:
[...] o mundo organizado de repente
se desorganiza, sobrevém então o desequilíbrio e as personagens oprimidas
passam a viver o clima do absurdo, isso então seriam as características de um
‘insólito contemporâneo’ que lida com o coletivo e a vida pública,
problematizando-os (Rodrigues, 2007, p.92).
Nessa
perspectiva, os eventos não ocasionais, violentos, são postos em movimento por
uma língua ficcionalizada que desloca as falas de seu lugar habitual, dando
nova roupagem à ideia de apagamento, de censura promovida pelo discurso
oficial, e abrem espaço à circulação da heterogeneidade identitária e discursiva,
numa demanda múltipla dos eventos insólitos que rondam as experiências humanas
diárias dos “pontos-sujeitos”.
Para
Carpentier, o maravilhoso constitui-se na modificação da realidade. Assim, a
sensação do maravilhoso pressupõe uma fé, uma crença. Os que não acreditam em
santos não podem curar-se com milagres de santos:
[...] o maravilhoso começa a sê-lo de
maneira inequívoca quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de
uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou
especialmente favorecedora das inadvertidas riquezas, de uma ampliação das
escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em
virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de ‘estado limite’
(CARPENTIER, 2009, p. 9).
A
experiência inabitual de que fala Carpentier presentifica-se no mistério que
envolve a árvore, mobilizando, assim, toda a comunidade. No plano maravilhoso,
é comum encontrarmos expressões ou termos que remetem os fatos ocorridos ao
mundo sobrenatural, sem uma explicação racional. De acordo com Todorov: “O
fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranhos”
(TODOROV, 2004, p. 100)…
…
O maravilhoso modifica o cenário, gera um estranhamento e estabelece novas
categorias para a realidade. Sendo assim, o
conto “O filho” do livro Momentos de
Ilusão, de Fragata de Morais, nos apresenta uma experiência inusitada
que é uma gravidez de sete anos: “Há sete anos que o filho lhe remexia as
entranhas. Não havia dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro,
que lhe falava em silêncio penoso”. A narrativa de “O filho” se desenrola
valorizando o sobrenatural e o erotismo, pois o esposo ao cumprir o ritual
afetivo conduz o desfecho do conto:
… Na sala, o marido notou a esposa a
arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando,
beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata
pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não de febre,
mas de desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do esposo e
vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.
A vontade renascida entumeceu-lhe
as calças, tentou ignorar.
“Que situação ridícula, não posso”.
Todavia os lábios femininos
insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado,
sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o
ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso
do plasma. (...)
Foi, na sala de visitas espaçosa,
ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e putrefacto da
companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.
Do carcomido ventre da esposa saiu
um sardão vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore,
restolhando as folhas secas das tristezas (Morais, 2000, p. 13).
Numa perspectiva numerológica, o sete
é o número místico por excelência em todas as religiões e seitas, desde as mais
primitivas as mais modernas. O sete é o número da criação. É também o número
que indica a relação viva entre o divino e o humano, entre o bem e o mal.
No conto “A Seiva”, da mesma obra, Fragata de Morais
metaforiza a fertilização da terra, símbolo maior, e a fertilização da mulher.
Os personagens centrais nutrem um amor com “raízes na inocência rural e na
crueldade terrível da natureza” (Morais, 2000, p.30), pois “o relâmpago quando
desvirgina o firmamento, seu grito de prazer troveja pelos ares, derrubando
árvores, casas e mesmo gente. Nada se lhe opõe no caminho da fertilização da
terra. Assim seria com ele”(Morais, 2000, p.30). Essa força sobrenatural oriunda do amor era
ponderada constantemente por Mbuta que:
… Lembrava as longas conversas com
Jorge sobre o que seria tradição, usos e costumes antigos, face à Bíblia, à
palavra simples, mas pesada dos padres.
Convencera-se por fim que, feitas bem
as contas, seria trocar um feitiço por outro. Abandonar a crença dos
antepassados para abraçar a crença do feiticeiro dos brancos que curava
leprosos com um simples toque de mãos, punha paralíticos a caminhar com uma
mera vontade e palavra e, coisa jamais vista na tradição dos negros,
ressuscitava mortos. Pesadas bem as coisas, de facto não havia motivos para
reter a crendice clânica. O que se perdesse por um lado, a Bíblia reporia por
outro, era como estava escrito olho por olho, dente por dente (Morais, 2000,
p.32).
O questionamento feito por Mbuta
acerca das tradições negras e brancas nos permite ler uma similaridade nas
experiências vivenciadas por ambos os grupos humanos em torno daquilo que se
origina de uma revelação não habitual, mágica decorrente da fé. Um exemplo
fortalecedor do maravilhoso no conto “A seiva” diz respeito ao relato de Jorge
acerca do batismo de seu bisavô materno:
… Jorge contou que seu bisavô
materno, de nome Kiavulo, fora baptizado com o nome João Patrício pelo padre,
por o original ser gentio. Segundo o argumento do agente de Deus na terra,
agora que virara cristão, seu nome teria que ser em consonância, nada desses
nomes esquisitos que ninguém sabia o que queriam dizer. Kiavulo, que desejava
aprender as coisas dos brancos, enfiou-se na catequese. Algum tempo depois,
entre outras informações complexas, ficou a saber que lhe era vedado comer
carne às sextas-feiras. Ora um dia desses, João Patrício, como então exigia ser
chamado pelos outros naturais, caçou uma lebre e preparava-se para a comer,
quando a nova consciência o admoestou, por ser o fatídico dia. Mas como a fome
não tem nada de cristã nem aprendeu a ler a Bíblia, João Patrício agarrou no
bicho já esfolado e antes de o comer meteu-o na água do rio, fazendo o sinal da
cruz sobre o mesmo.
‘Se Kiavulo ser agora João Patrício,
tu kabulo ser agora peixe. Branco pode fazer, mim também’, sentenciou para paz
de sua consciência (Morais, 2000, p.32).
Num ritual que envolve preceitos e
quebra de preceitos percebe-se que o imaginário das personagens está imbuído de
sensações experimentadas cotidianamente, pois o real maravilhoso se mostra de
um lado na religiosidade africana e, por outro lado, no catolicismo, bem como
nas práticas culturas africanas diárias. No desfecho do conto depreendemos uma
sucessão de fatos extraordinários:
… Jorge Torres, atordoado pela
voluptuosidade inesperada da namorada, logo se recompôs. Apertou-a com paixão e
preparou-se para o amor. Com frenesi conseguiu desnudar-se.
Quanto a Mbuta, já há algum tempo que
partira da casa da lenha. Só o corpo restara, cada vez mais abraçado a Jorge.
Sua essência descia enroscada pelo
poste na clareira, ao ritmo do bater abafado das mãos e dos pés das mulheres em
seus cânticos de fertilidade.
Silenciosa, feita serpente maior do
que a jiboia, foi apertando os elos pelo corpo do amado que, de olhos cerrados
e arfando, gozava o amor e a entrega, sem notar que a asfixia que sentia não se
devia ao êxtase do prazer fulgarante e ritmado, mas sim ao aperto premente da
cobra em si enroscada.
Quando sentiu o ar faltar-lhe por
completo, no momento excruciante do orgasmo, já roxo, seus olhos esbugalhados
viram a enorme cabeça da jiboia a olhá-lo, língua bifurcada silvante.
Despedindo-se no último beijo de
amor, sua cabeça tombou por fim para o lado, o corpo inanimado amassado.
A serpente desenroscou-se e rastejou
silenciosa para o mato, desaparecendo. Ao longe, os contratados tocavam seus
batuques dolentes que falavam das saudades da terra e dos familiares (Morais,
2000, p.34).
Nos contos de Fragata de Morais, o
real maravilhoso flui livremente, pois apresenta no primeiro momento situações
totalmente normais para só no futuro proporcionar ao leitor um cenário
sobrenatural.
O
estilo maravilhoso de que fala Carpentier no livro O reino deste mundo (CARPENTIER, 2009, p. 10) não é privilégio das Américas, mas uma herança de uma África que
imprimiu suas marcas e traços históricos numa diáspora que se descobre herdeira
de uma cosmogonia ainda em construção. As ações ditas insólitas, inabituais tem
um arcabouço fundado por um enredo cosmogônico que se desenvolve por meio de
uma elaborada estrutura simbólica como aquela percebida nas longas festas do
Komba, ritual de passagem de um ente querido em Angola.
A
performance experimentada pelos personagens do conto…. …bem como do ritual
amoroso do conto ‘O filho”, de Fragata de Morais mostra o corpo em performance,
conceito pensando por Paul Zumthor na obra Performance,
recepção, leitura (2000). De acordo com o mesmo autor performance se refere
de modo imediato a um acontecimento oral e gestual.
O conto “Desencontros” de Fragata de Morais,
retrata a história do espírito de um soldado chamado Hernando de La Cuenca y
Fraga. Numa perspectiva que remete a um contexto simbólico-religioso, Evaristo,
o esposo, presencia a possessão da mulher Filipina:
…
Uma noite, em que Evaristo teve o susto da sua vida, ao entrar no quarto deu
com Filipina sentada na cama em profundo transe, olhos esbugalhados e em
cheliques. Pensando presenciar um ataque de epilepsia, agarrou-a pelos ombros
com o fito de a deitar, sendo violentamente sacudido por um abanão que o enviou
de encontro à porta do quarto. Estatelado no chão, boca aberta de espanto,
ouviu uma voz masculina rouca e profunda a sair pelos lábios da esposa (Morais,
2000, p.38).
Hernando
de La Cuenca y Fraga retorna para cobrar um reconhecimento que não teve em vida
e usa o corpo de Filipina para obter reconhecimento pelos seus feitos:
Evaristo esfregou os olhos, Filipina
olhando-o fixamente e altiva. Parecia-lhe uma blasfêmia ouvir, não as palavras
preferidas, mas a voz masculina e roufenha gorgolejando pela boca da esposa.
“E o que tenho eu a ver com isso?”,
ouviu-se perguntar.
“A tua mulher terá que divulgar esta
minha miséria. É injusto, ninguém se lembra de mim. Andei com o general Pereira
de Eça a combater para o engrandecimento da pátria...”
“Minha mulher?!...”, disse, de olhos,
agora mais esbugalhados.
“Sim, tua mulher!”
“Meus Deus, que pesadelo!...”, balbuciou
Evaristo, esvaído de forças e vontade.
“Pesadelo é o meu. Mandume passeia-se
por aqui de cavalo branco, servido por vários Lengas e a cada instante ouve seu
nome ser recordado. Quanto a mim, nem a minha família sabe que existi!...”,
disse Hernando (Morais, 2000, p. 39).
Os
acontecimentos insólitos são aqueles que não ocorrem com frequência, contrários
às práticas sociais diárias, logo, causam espanto, estranheza, pois destoam dos
hábitos comuns dos indivíduos em suas experiências quotidianas, resultantes
historicamente de um sistema de concepções herdadas, correspondentes às formas
como os homens se relacionam e transmitem seu conhecimento entre uns aos outros
em uma determinada cultura e em um determinado momento das distintas realidades
sociais. Diante disso, “é lícito opor o insólito ao natural, e ao ordinário,
termos comuns na teoria dos gêneros literários quando se quer falar de
Maravilhoso, Fantástico, Estranho, Sobrenatural, Realismo Maravilhoso, Absurdo”
(GARCIA, 2007, p.19). Seguindo as explicações do dicionário, podemos ampliar
nossas informações acerca daquilo dito natural. Segundo ainda o dicionário, o
termo “natural”, significa aquilo que segue a ordem natural das coisas, lógico,
próprio do instinto, instintivo, espontâneo, enfim, o que é previsível,
provável (FERREIRA, 1986, p. 1608).
O
projeto literário angolano contemporâneo conta com várias correntes, uma
decorrência das mudanças sociais e políticas. De acordo com Vasconcelos (2009),
o período pós-independência é marcado literariamente pelos diversos e múltiplos
processos de ruptura conceptual de arte com o tipo de regime e sua falência num
universo de múltiplos e de intermináveis experimentalismos. Esse
experimentalismo conduziu a trajetória artística dos diversos escritores
angolanos. Assim, transitando entre experiências tradicionais e fatos
extraordinários Boaventura Cardoso e Fragata de Morais produziram obras
representativas das vertentes insólitas da literatura angolana.
Bibliografia:
CARPENTIER,
Alejo. O reino deste mundo. São
Paulo: Martins Fontes, 2009.
CHAVES, Rita, MACÊDO, Tania &
MATA, Inocência.
FERREIRA,
Aurélio Buarque de Holanda. Novo
dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GARCIA,
Flavio (Org.). A banalização do insólito:
questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de
Janeiro: Dialogarts, 2007.
MORAIS, Fragata de. Batuque mukongo. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2011.
O
fantástico na prosa angolana.
Luanda: Mayamba, 2010.
A
sonhar se fez verdade.
Luanda: Inic, 2003.
A prece dos mal amados. Porto: Campos
das letras, 2005.
Momento
de ilusão.
Luanda: Chá de Caxinde, 2000.
Jindunguices. Luanda: Inald, 1999.
Como
iam as velhas saber.
Luanda: Inald, s.d..
A
seiva.
Luanda: Inald, s.d..
Amor
de perdição.
Luanda: Chá de Caxinde, s.d..
18
– RODRIGUES, Tailane. In: GARCIA, Flavio (Org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de
construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
19
– TODOROV, Tzvetan. Introdução
à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
20 – ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.
Sem comentários:
Enviar um comentário