quarta-feira, 2 de outubro de 2019

O SENHOR DAS ÁGUAS

O Senhor das Águas

Uma crónicalírica molhada de Fragata de Morais. Aquele odor visceral a maresia da Ilha de Luanda. O marulhar de águas das memórias. O tilintar cristalino dos humores das relações interpessoais. O peixe evaporado do amor. A odisseia de uma Angola (esquisita? surpreendente?) esculpida com escopro de sal, sua marca autobiográfica incrustada no molde: Ilha Eu. Cenários de um drama desenhados com música clássica, aquela que se (de)compõe com dedos de água de Johann Sebastian Bach.
José Luís Mendonça
(Cultura – Jornal Angolano de Artes e Letras)

Kalunga, o Senhor das Águas
Ao ritmo e harmonias de andamentos musicais, o leitor mergulha nas malhas ficcionais tecidas por Roberto, o narrador, que revela confissões sobre os dramas de uma insularidade interior, confrontada com a nudez do mundo urbano à sua volta. Construída por força do recolhimento vital, trata-se de uma ilha erguida nos arcanos da psicologia individual.Mas o narrador habita numa outra Ilha, a do Cabo, situada em Luanda, cuja existência histórica anda há séculos rodeada de histórias e mistérios de uma espiritualidade ancestral de que Kalunga, o Senhor das Águas, é uma das suas manifestações hierofânicas. A vocação enciclopédica do narrador torna irrenunciável o diálogo com a religiosidade das águas, dos mares e dos rios onde reinam Mutakalombo, Kilamba, Kianda e divindades consagradas em outras culturas.

Luís Kandjimbo, ensaísta e crítico literário




Haveria pois que esperar, sem receios, sem ansiedade. Por volta das nove e meia, deitei-me na rede que entermediava os dois coqueiros. Para não ser surpreendido, suspendi os ventos, nem uma briza que me distraísse e levassa a minha Ilha Eu para qualquer outro lugar que não fosse aquele onde a colocara. Isso era fundamental.
Carl Gustav Jung, cuja leitura de suas obras  me impressionou quando mais jovem, muito mais que as de Sigmund Freud, ambos companheiros de estrada até uma certa altura, falou-me, sim, digo bem, falou-me, pois foi assim que apreendi,  sobre a imaginação activa, já prevalecente na era da alquimia. Ao ouvi-lo lendo-o, fiquei a saber que a mesma nos apresenta uma interacção entre os recheios do consciente, vamos chamar-lhes assim, através da sua personificação. Portanto, a livre imaginação, o furação benévolo da intuição e do sentimento e não os impedimentos e castrações da razão. Numa imagem mais nítida, o cavalgar dos ginetes selvagens pelas pradarias do oeste norte americano, o palmilhar delirante dos golfinhos pelos oceanos e seus saltos cabriolantes. A gazela no seu longo salto curvilíneo. A majestosa sensação do condor a pairar os céus ao sabor das correntes  com que Eolo o mimoseia.
Relato-vos o que me vai na alma, enquanto espero pela declarada visita para que não haja surpresas, para que esperem o que não esperam. Não vos falo, como já referi, de quimeras, de sonhos, mas sim de realidades que, se todos tivessem para elas voltados, seria como a luz do dia na sua banalidade de nascer todas as manhãs. Não nos assustamos ou espantamos com isso nem por isso, nem nos sentimos enfermos em busca de cura pelos mesmos motivos, desde os primórdios.
Apenas não poderia sofrer a vantagem da surpresa, fosse quem fosse que se materializasse na anunciada visita, carne e osso ou espírito, caber-me-ia surpreender.
Por momentos pareceu-me ouvir um restolhar nas raízes dos lilases e sentir uma ondulação ligeira. Aguardei paciente, não havia pressa ou inquietação.
Às dez precisas, vejo um buraco em formação, no centro, bem na base da minha Njaro, até dele emergir um ser diáfano, nem homem nem mulher, sem rosto e coberto de uma longa capa também translúcida que não me permitia ver se humano ou espírito, talvez kianda ou outro ser qualquer de que nunca ouvira falar. A seu lado um cão que mais parecia um jacaré.
Assim que se colocou sobre aos lilases, o buraco fechou-se e tive a sensação que levitava. Prontamente me levantei da rede, tanto pela surpresa,  que me preparara para não ter ou demonstrar, quanto pelo desejo de não ofender o visitante. Não sabia se o mandava sentar no luando, cadeira não tinha, ou oferecer-lhe a rede na qual me estirara.
"Não te amoles, estou bem assim de pé", respondeu, lendo-me a mente.
"Como devo tratá-lo, ou tratá-la. Perdoe-me o espanto".
"Podes chamar-me Muini e não tenho género. De onde procedo tais coisas são supérfluas, para não dizer dispensáveis".
Deslizou à volta da ilha três vezes e por fim levitou sobra a montanha brilhante, a Njaro que eu forjara com tanto carinho. Fosse a montanha uma oliveira, teria a certeza de uma aparição da senhora de Fátima ou, como existem tantas e tantas, tantas quanto a imaginação dos que delas necessitam, seria outra senhora qualquer. Da Muxima, do Monte, de Kalumbu e, porque não, a senhora da Ilha do Cabo?
"Tua arrogância merece castigo", disse, por fim
"Minha arrogância, senhora Muini?" - decidi dar-lhe o género feminino - "Não entendo, não sei de que fala", contestei, meio assustado, nunca me vira ou achara arrogante.
"Trago uma mensagem de Mutakalombo, que se sente verdadeiramente agastado contigo pela usurpação do poder que te concedeste das águas e dos ventos. Ele é o único capaz e destinado a tal. Com que autoridade te arrogaste esse privilégio? Dá-te por feliz que o feroz guerreiro que me acompanha se limita a olhar-te", apontou para o cão jacaré.
Mas que privilégio, pensei? E que guerreio, só via um jacaré a dar-se ares de canídeo, ou vice-versa? Todos nós humanos somos donos do pensar, patrões dos rumos que incutimos à nossa imaginação, criadores sem par, ou nunca teriam existido Leonardo da Vinci, Auguste Rodin, Benjamin Franklin, Ernest Everett Just, Madame Curie, Georges Meliés, Charles Henry Turner,  entre tantos e tantos mais.
O ser que inventou a roda, era arrogante?
Tivesse existido à altura o Prémio Nobel, tê-lo-ia ganho, por ser a maior descoberta da Humanidade até hoje. Sem essa roda a girar à frente de um mui feliz troglodita, como as crianças da minha infância faziam com os aros dos toneis de vinho, não haveria  Michelangelo Buanarroti, Alexander Fleming, Percy Julian, Patricia Bath, Thomas Edison, Henry Ford, numa lista quase infindável.
Quem se apropriou do fogo pela primeira vez, seria hoje multibilionário, receberia no mínimo três triliões de tweets por dia. Sua página do Facebook seria o facebook inteiro, seria o rapaz ou rapariga mais caliente da terra, ditaria trends e modismos.
"Que privilégio?”, indaguei admirado.
"Tentas pairar acima de todos com essa imaginação que te leva incluso a mencioná-lo. Ele, que deve viver nos fundos marinhos em tranquilidade a cuidar dos seus afazeres. Reverbera lá em baixo o deslizar desta ilha inexistente, e conhece-se o teu desejo de domínio dos ventos, como se fosse possível. Terás que parar, a imaginação esguia é pertença única das divindades, não dos mortais. Com os deuses ela perdura a todo o sempre, com vós nem enterrada é no dia do derradeiro adeus, unicamente as vossas vaidades mundanas."
Revoltei-me, mas contive-me.
O que me estava a pedir era a auto-castração.
Nunca conseguiria viver na racionalidade, na coerência do raciocínio.
Minha fortuna era a fantasia desabrigada e tão delicada que nunca se dera ares de tufão, de estrondos relampejantes e assustadores. Como me pediam isso, quando pelas cavernas diversas do Mundo ainda hoje lemos estórias infindáveis e sugestivas, plenas de cores e intenções, desenhadas por sonhadores?
"Mas que mal fiz a Mutakalombo, de quem é enviada?
"Infiltraste-te no seu Mundo, arrogaste-te propriedades de que do mundo visível não são, não podem pertencer…
Ilha Eu?... Mas o que é isso?...
Esses pedaços de raízes de lilases unidos entre si e que só na tua mente existem, feitos ilha? Vais a outra divindade longínqua e roubas-lhe a capacidade de soprares ventos a teu bel-prazer? E perguntas que mal fizeste"?
"E por tal mereço castigo? " - contra-ataquei com violência propositada para que minha indignação reverberasse nos fundos do mar e Mutakalombo ouvisse - "Os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, o grego Esopo com suas fábulas, Jean de La Fontaine, Charles Perrault, Hans Christian Andersen, Lewis Carroll, Walt Disney, esses sim mereceriam digno castigo pois foram incentivadores ao desenvolvimento da imaginação das crianças mundo afora, deram-lhes asas para voarem para onde e quando desejassem. O que são afinal as noites de 1)sunguila pela África nossa? Sinto-me ofendido".
"Esses, não penetraram no mundo invisível. Limitaram-se a colocar parvalhices como lobos a comerem, literalmente, avozinhas e por consequência a sofrerem cesarianas para as resgatar; jovens encalhadas a viver com sete anões eunucos numa mina nas montanhas; corvos a falarem com raposas comedoras de uvas e ainda por cima verdes; meninas a caírem por tocas de coelho e a engajarem em falas com rainhas de naipes de cartas e ovos sentado em cima de um muro. Tenho que usar este tipo de linguagem para te fazer ver que não afrontaram mundos de divindades aquáticas ou outras, ainda não percebeste a diferença"?
"Para ser sincero não. As ferramentas que usaram e que eu uso são as mesmas, só que os resultados finais diferentes. Eles entretiveram um mundo de crianças, eu de adultos, ambos com a imaginação,
__________
1) Sunguilar: Serão durante o qual se contam  estórias, provérbios, adivinhas, à luz das fogueiras.

mesmo se lá em baixo, de onde vem, sejam percebidas de maneiras diferentes. Raposas a falar com corvos sobre uvas verdes não é tão diferente de eu ter a minha Ilha Eu. Por que motivo tenho que abdicar, contra vontade, de um mundo que só o uso quando me convém"?
"Porque assim é. Mutakalombo é soberano sobre o mundo das águas marinhas. Tudo e todos lhe devem obediência. As marés sobem e descem a seu comando. O Sol levanta-se e põe-se nele, assim como a lua e as estrelas".
Comecei a sentir-me mais à vontade, mais seguro, a divindade acompanhada de seu cão jacaré mostrara-me a saída.
Do mesmo modo que criei esse deus ditador, assim o poderia eliminar com a maior das facilidades, poderia destitui-lo. Bastaria eliminá-lo do meu pensamento, dos caminhos imaginativos de minha vida, afogá-lo sem piedade em suas próprias águas.
Por que não poderia recomeçar e recriar o meu Ndjaro, não de cinco metros de altura, mas com os mais de cinco mil que tem? Não revestido de guano de gaivotas mas sim de neves perpétuas, enquanto eu vivesse?
Não foi esse o húmus de Platão? Não acreditara ele que o que se capta com os olhos da alma são as formas não físicas e que acabam por ser aquelas que contêm o fundamento da realidade, diferentes daquelas que se captam com os olhos da cara? Onde residia então a diferença?
"O que nós de outros mundos gostamos de observar, é a perene infantilidade dos humanos. Pensam-se soberanos do Universo, mágicos da Ciência. Creem-se próximos dos deuses, menores ou maiores. O que acabaste de pensar é a maior infantilidade que hoje ouvi. Afogar Mutakalombo em suas próprias águas? Devastares esta pequena saliência coberta de fezes de aves que Mutakalombo comanda? Esqueces que elas se alimentam dos seres vivos que vivem nos mares? Nada neste Mundo se encontra destituído de um ser interior."
Recolhi-me novamente, esquecera que a minha mente podia ser lida, no fundo nem precisava de falar, bastava-me pensar. Com que castigo iria ser punido? Se mostrasse humildade, talvez conseguisse escapar com uma pena menor.
"Não vais escapar de nada. Vim com uma missão e pela fenda que me viste entrar, será pela fenda que me verás sair e, se tiveres discernimento, será esse o momento que a tua Ilha Eu desaparecerá para dar lugar a qualquer outra coisa racional. Por vontade deste guerreiro que me acompanha, já estavas nas suas garras a caminho das profundezas dos mares."
"Que me resta então cumprir, qual a minha sentença", tentei não demonstrar condescendência na pergunta.
Desceu do meu Njaro, imaculada, e postou-se diante mim.
Se tivesse rosto, olhá-la-ia nos olhos, com bravata, como o condenado à morte que deseja fumar o seu último cigarro ou cantar uma canção interminável. O chamado guerreiro, esse sim tinha uma forma e corpo concretos, só que impossível de determinar o que era, por vezes cão, outras, jacaré.
"Tenho ordens para ser leniente contigo, apesar de tudo é a primeira vez que és obrigado a uma confrontação interna séria. Terá que ser pedagógica, por tal. A partir de agora, entras no mundo da racionalidade e do racional. Sem entrares em filosofias de distinção da racionalidade. Terás que ser, durante um ano uma pessoa que age em conformidade com a razão, a tua ilha é aquela na qual vives, a Ilha do Cabo, não há diferente. Se lá em baixo for ouvida outra coisa qualquer desigual, se começares a sonhar acordado novamente, a criar mundos paralelos não existentes, considera-te habitante do reino de Mutakalombo".
Dito isto, esfumou-se, com o seu guerreiro, pela fenda por onde entrara. Nem ousei pensar no que era, ou o que era e onde é que se encontrava a tal fenda. Começara o meu exílio, a minha via cruci amarga, teria que me autoflagelar.

QUARTO ANDAMENTO
UM FANTASMA DE PESO
Grave

Após este encontro com a enviada do dono dos fundos marinhos, que ainda não analisei convenientemente,  é natural que me sinta agastado por ter sido ludibriado por mim próprio. Não sei se por ter edificado com esmerado denodo uma ilha particular, se por me ver obrigado a vaporizá-la de todos os mapas do Mundo, em que não constava.
Vejo-me assim a tempo integral no planeta da racionalidade, coisa estranha e certamente para doidos varridos e gente sem emoções, como a desalmada da minha professora de matemática que me falava numericamente em línguas estranhas, piores do que aquelas que ouço ocasionalmente nos cultos evangélicos. Essas, como não são racionais, até me parecem entendíveis e aceitáveis, de facto pertencendo a um espírito qualquer, talvez até santo.
Será que desde que descemos das árvores, teremos agido como se não houvesse espiritualidade intrínseca?
Inspiração?
Visões?...
Sonhos?....
Os nossos anseios, devaneios e sabe-se lá mais o quê, não pertencem aos domínios dos diversos deuses e demais divindades que criámos ao longo de milénios, do mundo da paixão, portanto? Deuses amigando humanos e a gerarem semideuses; bichos acasalados com deuses a gerarem monstros impenitentes para oprimir e nos manter permanente em expiação, em permanente purgação?
Desejar ficar rico até mais não, como Midas da Frígia que, na sua ganância, em tudo que tocava virava ouro, pertence à racionalidade humana?
O que levará então as sociedades primitivas ainda existentes, a não se preocuparem minimamente com o vil metal a não ser para decoração, e a não conterem em si esse germe inexplicável e nefasto de uma reacção que, no fundo, quando ultrapassa as fronteiras aceitáveis do bem-estar pessoal e colectivo, se torna terrivelmente amoral? Não eram os Incas donos de todo o ouro do Mundo à sua volta?
Se vivemos com paixões, com ódios, ressentimentos que nos conduzem a gestos e acções as mais irracionais, como eliminar esse aspecto, essa condição humana? Impossível, a racionalidade está contaminada irremediavelmente pela irracionalidade, nunca o inverso. Somos animais duais, na melhor das hipóteses. A mesma criatura consegue ser Mozart e, na outra face, Hitler.
Mas como me proibi próprio de ser rei incontestado de uma ilha denominada Eu, de viver a tranquilidade que me serve de ponte para todo e tudo o que segue, serei coerente e irei tentar esta nova e periclitante fase de autodomínio emocional. Não por receio a Mutakalombo, quem o criou e permitiu sua entrada na minha Ilha Eu, fui eu próprio. Se desejasse algum dia fazer-me mal, também teria os anticorpos necessários, o antídoto não para me defender e safar, mas sim para me precaver  de entrar num Mundo em que acabaria por perder o controle dos botões do comando.
E é essa mesma falta de racionalidade que me leva a apregoar a minha não crença em bruxarias mas, pela superstição, pela via humana do temor ao desconhecido, reservar-me a dúvida de sua existência, com ou sem vassouras freudianas em cavalgada pelos domínios que maleficiam. Todos nos reservamos dessas e outras dúvidas ligadas à ancestralidade, ao passado comum primordial, ou não seríamos humanos.
Ainda que mergulhado num mar escuro e profundo de dúvidas, achando que me perdi em um qualquer lugar, vou cumprir meu decreto agora imperial.
Quero conhecer as fronteiras do meu auto-domínio. 

sábado, 30 de março de 2019

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

BATUQUE MUKONGO




(Excerto)

4
Uíge na Uízi
terra onde nasci
catrapim pim pim
que te afastas de mim
Uíge na Uízi
onde nasci
às cinco da tarde
explodi do ventre da mãe
ao canto do pírulas
mãe materna
mãe terra
mãe sorte
mãe água do rio
rio de outras águas maternas
chovidas ou não
chuva rugido de leão
chuva marca leve das pegadas da gazela
nascido para o mundo
às cinco da tarde
no Uíge na Uízi
quase apagada memória
da longa e única rua
de casas de adobe
de pau a pique
em pique de pau
novo e logo envelhecido
no tragar do salalé
que não sabia de arquitecturas
na linearidade da rua
onde o pau a pique
por fora e por dentro
salpicado de barro vermelho
florido de várias camadas de cal
apaziguou os gritos do parto
às cinco da tarde
de um Novembro sofrido
no ventre de uma bela mulher
Alice com Maria mãe de Deus
dores gemidas na culpa bíblica
porém Maria sempre Alice
a embalar em seus braços exaustos
o novo mundo
ainda envolto
nos líquidos maternos
mas logo a chamar
pela boca da avó materna
os antepassados
da linhagem
para o batuque
tuque norte
tuque sul
tuque este
tuque oeste
em cada ermo do mundo
cada tuque batido
uma bênção solta
no balido do cabrito esgoelado
na pele do boi malhado
preto e branco
preto mukongo
branco beirão
batuque mukongo dos reis antigos
fado do branco vindo dos mares

5
Assim nasci
às cinco da tarde
no Uíge na Uízi
terra onde nasci
catrapim pim pim
que te afastas de mim

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLA




Quando me veio a ideia de elaborar a presente antologia, de imediato se me colocou a grandeza e delicadeza da tarefa face à vasta gama de escritores nacionais, e sobre o que eu poderia antever como imaginário, fantástico, real e ou irreal, entre muitas outras perspectivas, numa sociedade em que as fronteiras entre o mundo visível e aquele invisível sempre estiveram tão intimamente ligadas.
Face à oralidade das sociedades africanas, da qual Angola não teria como escapar, este universo de ambiguidade não poderia deixar de ter residência visível nas diversas obras dos escritores angolanos que, ao longo dos séculos XIX e XX, foram férteis na produção de textos em que diversos mundos se interligavam com acontecimentos estranhos, acontecimentos que com muita frequência fugiam ao entendimento de serem ou não reais perante a percepção do aceitável e ou do credível.
Óscar Ribas, um dos mais conceituados nomes da etnografia nacional, nascido em 1909 e já falecido, autor de vasta obra em que recolheu a extremamente valiosa literatura oral africana na zona de Luanda, afirmara que  os contos ordinariamente reflectem aspectos da vida real. Neles figuram as mais variadas personagens: homens, animais, monstros, divindades, almas. Se por vezes, a acção decorre entre elementos da mesma espécie, outras no entanto desenrolam-se misteriosamente, numa participação de seres diferentes.
Confrontei-me, deste modo, com a questão do fantástico, algo que não pode ser explicado via racionalidade, e com as possibilidades do verosímil versus o inverosímil, o real e o sonho, o natural e o sobrenatural. O que procurar, o que e como inserir? Seria o fantástico, o estranho, o maravilhoso e a fantasia contidos  na panóplia de obras de escritores angolanos a mesma coisa?  Quedar-me-ia unicamente com o texto, vamos chamá-lo por contraposição adulto, ou igualmente com o tradicional, o juvenil e o infantil? Na oralidade africana,  contar, o sunguilar, é parte intrínseca da vida. É às noites, sob o agasalhar dos fogos, que as tradições, os usos e costumes são propagados de geração em geração, através dos contos, das estórias, das adivinhas, dos provérbios. Contar, relatar, gravar na memória colectiva é uma das acções mais antigas da história da humanidade, reflectidas em testemunho nas grutas espalhadas pelo mundo inteiro.
Acho que me preocupei mais com os aspectos do estranho, do maravilhoso, talvez mesmo até do insólito, na recolha que levei a cabo, deixando o fantástico maioritariamente para a literatura tradicional e para a literatura infantil, narrativas em que o narrador ou o escritor mais se preocupa com a mensagem, com a valorização moral e com um fim que transmita uma postura considerada de funcional na sociedade.
Tzvetan Todorov, um filosofo e linguista búlgaro desde 1963 a viver em Paris, no seu livro “Introdução à Literatura Fantástica”, estabelece normas a respeito do fantástico na literatura, diferenciando entre o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Segundo ele, em um mundo que é o nosso, que conhecemos (infira-se ocidental e moderno), sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Quem percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então essa realidade está regida por leis que desconhecemos… O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza. Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um género vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural.
Não irei referir nesta apresentação o que me levou a incluir um e não outro escritor,  até porque a linha divisória não me permitiu estabelecer fronteiras entre o estranho, o maravilhoso  sempre existindo um subgénero transitivo entre eles. Segundo Todorov,  seja como for,não é possível excluir de uma análise do fantástico, o maravilhoso e o estranho, géneros aos quais se sobrepõe. Acho que os contos e os excertos de textos mais largos que me serviram de base, englobam-se largamente no objectivo a que me propus.

Fragata de Morais
Coordenador
 01 / 06 / 09


DESALMAR 

A Vuíla Sabata fugira-lhe a assustada alma. 
Precisamente às catorze horas e vinte e cinco minutos do dia 15 Junho de 1975, quando, emaranhado na mais recôndita raiva animaleja, entre medos incompreensíveis e razões descontroláveis, esvaziou o carregador da Aka no crânio de um soldado já morto, mas ainda e para sempre inimigo.
Com a cabeça feita passador, tantos eram os buracos, o espírito do falecido, quem desfalece morte arrogante vira alma vadia, manteve-se no corpo mais cinco horas. 
 O que observava lá fora amedrontava-o, como é sabido, as sombras só se habituam a tal, depois dos vivos apagarem a luz que as faz vaguear, o esquecimento, portanto com eles não mais bulindo. Assim, acanhou-se, sobretudo por não ter a certeza do furo mais seguro por onde escapulir. Acabrunhado, no seio de tanto miolo esfarelado e sentindo-se ainda matéria, não entendia por que Sabata, não obstante pertencerem a partidos políticos armados diferentes, esvaziara na cabeça de seu corpo, já inerte, todo um carregador de Aka, enquanto o pontapeava feito louco desvairado, até se sentir exaurido. Em circunstâncias similares, teria ele feito o mesmo? 
 Com este receio mais do que natural, não apreendendo que doravante seria mera essência desincorporada e que as balas intrusamente lhe haviam subtraído a descartável matéria, o espírito do soldado inimigo de Vuíla Sabata, optou por habitar aquela moradia desumana enquanto fosse possível ou permitido, o esburacado crânio de que fora dono. Todavia intuía a mudança e estranhava não se achar ambientado. Faltava ao corpo inerte a ligeireza física habitual, o reboliço das correrias pelos bairros pobres da cidade desconhecida, para onde viera impor a desliberdade do seu partido armado, em relação ao outro. 
Dali a umas horas estaria escuro, e seu cadáver velado por cães vadios e esfomeados. Seria a hora do adeus mundano. Por enquanto ia-se entretendo a observar a rigidez a assenhorar-se do corpo, ao qual durante dezoito anos se colara e apegara. Pasmado, descobriu novas perspectivas, como, por exemplo, a de ver de perto as rodas dos poucos carros que ousavam passar naquela rua, raspando-lhe o furado crânio. Porque não o socorriam? Unicamente os cães a rondá-lo, farejando, farejando e gemendo arreganhados ganidos em alimentadas esperanças de lauta ceia. 
Às dezanove horas ganhou coragem, e de um pulo, saiu lesto pelo furo de bala mais cerca. Alguns dos cachorros, trespassados por uma súbita corrente fria, fugiram como se alguma turba de garotos os tivesse apedrejado. Outros sentaram-se no alcatrão deserto a uivar, até que uma rajada curta de metralhadora os pôs em silvante debandada. 
 O espírito do então inimigo de Sabata, novamente assustado, subiu célere e ficou a rondar as árvores do bairro desconhecido até que as estrelas, sombras de perdidos antepassados, lhe anunciaram o caminho dos errantes, porque morrera fora e longe dos seus. Para ali quedaria o corpo a apodrecer no quente alcatrão tropical, na manhã seguinte nada mais do que restos do farto repasto dos cães, a serem atirados para um qualquer buraco e tapados a pressas nauseabundas. Estava desprendido dos vivos, já que quem mantém os espíritos em permanente amofinação, são os que deles se lembram. Quanto a Sabata, perdeu a alma porque de repente ela sentiu-o gelado, tanto quanto a água matinal na cachoeira. Apavorada, nunca antes se vira em tal estado, comprimida com ocultos medos ancestrais incompreensíveis, anichou-se sem querer no dedo que apertava o gatilho, testemunhando e participando de todo aquele dano. No momento em que Vuíla Sabata 102 Fragata de Morais (org.) pôs a Aka a tiracolo, para poder pontapear o soldado ainda e sempre inimigo à vontade, a alma, de tão pequenina e contrita, caiu com o enorme peso da culpa bíblica para o chão, escoando pela primeira fresta do alcatrão. 
Sabata sentiu-se ligeiro e etéreo. 
Com o pecado ora esvanecido do seu humano horizonte, tornara-se, enfim, dono absoluto da inconsciência. Doravante a negação seria sua rédea, a razão a inimiga visceral, a moral e a ética os vermes com que saciaria os desejos irreprimíveis da concupiscência da guerra. 
Com a ilegalidade de Deus decretada por despacho oficial, Vuíla Sabata, sabendoo na clandestinidade, afiou os instintos, metamorfoseou-se no abstracto concreto e reinou senhor incontestado dos irreflexos. Tornando a enfiar um cano de fuzil pelo recto de Federico García Lorca, de quem nunca ouvira falar, apregoou por tudo quanto é canto de Angola, “viva la muerte”. Por essas sendas marchou, ao som dos tambores marciais, a juventude forjada para as desigualdades entre iguais. Amor sobretudo com desamor se paga, seria o moto, durante o que pareceu ser uma eternidade opaca. Mais de duas décadas depois de Vuíla Sabata ter perdido a alma, alguns muitos ainda se indignam ao lerem no jornal diário, ao verem e ouvirem nos noticiários da televisão, que o crime, a amoralidade, o apatriotismo, tomou conta das vidas inviáveis de quase todos. 
Esses, devem ser os que constantemente fustigam a esperança jamais banida, na busca da alma de Vuíla Sabata, para que seja restituída e redimida. Alma porventura agrilhoada no mais fundo de uma arca libanesa ou indiana, trancada a sete chaves com cadeado electrónico angolano numa caixa forte suíça, após ter forçosamente penado longo e tortuoso trajecto, da fenda no alcatrão por onde escorregara. 

in Momento de Ilusão
Campo das Letras, 2000 
Chá de Caxinde, 2000                                                                 

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

SUMAÚMA - POESIA




Óbitos
  
O olho do viandante
é rápido
não tanto
quanto os passos
gravados
pela peçonha

na cobra
o morto dança
sortilégios tribais

noites de óbito


Elefantíase
  
Meu embondeiro
a pingar múcuas
por raízes
dispersas em prece

jeitoso
elegante
sinuoso

Meu embondeiro
de espíritos albergados
na fundura do casco
em espera do viajante

Meu embondeiro
meu embondeiro


 O mar

  
Vi-te
trajada furor das ondas
desfeitas
em meus braços

Vi-te
Preenchida de conchas
do meu ouvir
e no paladar
do meu sentir
fostes-te pelo vazar do mar
deixando-me o eco
da eterna solidão
verde-azul



 Cantos

  
Metamorfoseado
na janela quadriculada
da lua
sinto as noites
arrastarem-se

lá fora
o grilo canta
canta
canta
para me adormecer



 Verdades


Sou o mar
a terra
a terra a amar
o barco de guerra

sou o sol
a ave
teu corpo mole
a porta sem chave
o vento
amor
o antigo lamento
o escravo carregador

sou a esperança
a irmandade
a sofrente criança
a falsa liberdade


VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA ANGOLANA



Jurema Oliveira - Professora da Universidade Federal do Espírito Santo na área de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa, Pós-Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense Uff, desenvolve pesquisa na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa

Resumo: Depreender na literatura angolana as vertentes da ficção insólita contemporânea.

Palavras-chave: tradição, oralidade e insólito

O corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do mundo (ZUMTHOR, 2000, p.90).
O presente trabalho tem por objetivo discutir as vertentes da ficção insólita angolana. Para esse estudo escolhemos as obras dos autores (…) e Fragata de Morais.

           … Fragata de Morais escreveu Como Iam as Velhas Saber (1983, A Seiva (1995), Jindunguices (1999), Momento de Ilusão (2000), Amor de Perdição, Antologia Panorâmica de Textos Dramáticos (2003), A Sonhar se Fez Verdade (2003), A Prece dos Mal Amados (2005), O Fantástico na Prosa Angolana (2010) e Batuque Mukongo (2011).
O século XX presenciou modificações históricas importantes no cenário mundial e em particular nos países africanos de língua portuguesa. O fenômeno violência nasce do desejo de dominação de um homem sobre todos os homens, mas, de acordo com Hannah Arendt, a violência destrói o poder, não o cria. Em contrapartida, as ações violentas fazem emergir no cenário social experiências insólitas, não habituais do ponto de vista cultural. A violência neutraliza toda e qualquer possibilidade de os homens se organizarem e viverem em harmonia e consequentemente abre espaço para o luto visível nas imagens refletidas num espelho d’água embaçado. Estes fatos constituem o móvel, os eventos sustentadores do gênero insólito:
           [...] o mundo organizado de repente se desorganiza, sobrevém então o desequilíbrio e as personagens oprimidas passam a viver o clima do absurdo, isso então seriam as características de um ‘insólito contemporâneo’ que lida com o coletivo e a vida pública, problematizando-os (Rodrigues, 2007, p.92).
Nessa perspectiva, os eventos não ocasionais, violentos, são postos em movimento por uma língua ficcionalizada que desloca as falas de seu lugar habitual, dando nova roupagem à ideia de apagamento, de censura promovida pelo discurso oficial, e abrem espaço à circulação da heterogeneidade identitária e discursiva, numa demanda múltipla dos eventos insólitos que rondam as experiências humanas diárias dos “pontos-sujeitos”.
Para Carpentier, o maravilhoso constitui-se na modificação da realidade. Assim, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé, uma crença. Os que não acreditam em santos não podem curar-se com milagres de santos:
          [...] o maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou especialmente favorecedora das inadvertidas riquezas, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de ‘estado limite’ (CARPENTIER, 2009, p. 9).
A experiência inabitual de que fala Carpentier presentifica-se no mistério que envolve a árvore, mobilizando, assim, toda a comunidade. No plano maravilhoso, é comum encontrarmos expressões ou termos que remetem os fatos ocorridos ao mundo sobrenatural, sem uma explicação racional. De acordo com Todorov: “O fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranhos” (TODOROV, 2004, p. 100)…
… O maravilhoso modifica o cenário, gera um estranhamento e estabelece novas categorias para a realidade. Sendo assim, o conto “O filho” do livro Momentos de Ilusão, de Fragata de Morais, nos apresenta uma experiência inusitada que é uma gravidez de sete anos: “Há sete anos que o filho lhe remexia as entranhas. Não havia dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro, que lhe falava em silêncio penoso”. A narrativa de “O filho” se desenrola valorizando o sobrenatural e o erotismo, pois o esposo ao cumprir o ritual afetivo conduz o desfecho do conto:
          … Na sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não de febre, mas de desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.
A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.
“Que situação ridícula, não posso”.
Todavia os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso do plasma. (...)
Foi, na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.
Do carcomido ventre da esposa saiu um sardão vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas (Morais, 2000, p. 13).
          Numa perspectiva numerológica, o sete é o número místico por excelência em todas as religiões e seitas, desde as mais primitivas as mais modernas. O sete é o número da criação. É também o número que indica a relação viva entre o divino e o humano, entre o bem e o mal.

No conto “A Seiva”, da mesma obra, Fragata de Morais metaforiza a fertilização da terra, símbolo maior, e a fertilização da mulher. Os personagens centrais nutrem um amor com “raízes na inocência rural e na crueldade terrível da natureza” (Morais, 2000, p.30), pois “o relâmpago quando desvirgina o firmamento, seu grito de prazer troveja pelos ares, derrubando árvores, casas e mesmo gente. Nada se lhe opõe no caminho da fertilização da terra. Assim seria com ele”(Morais, 2000, p.30).  Essa força sobrenatural oriunda do amor era ponderada constantemente por Mbuta que:
          … Lembrava as longas conversas com Jorge sobre o que seria tradição, usos e costumes antigos, face à Bíblia, à palavra simples, mas pesada dos padres.
          Convencera-se por fim que, feitas bem as contas, seria trocar um feitiço por outro. Abandonar a crença dos antepassados para abraçar a crença do feiticeiro dos brancos que curava leprosos com um simples toque de mãos, punha paralíticos a caminhar com uma mera vontade e palavra e, coisa jamais vista na tradição dos negros, ressuscitava mortos. Pesadas bem as coisas, de facto não havia motivos para reter a crendice clânica. O que se perdesse por um lado, a Bíblia reporia por outro, era como estava escrito olho por olho, dente por dente (Morais, 2000, p.32).
         
O questionamento feito por Mbuta acerca das tradições negras e brancas nos permite ler uma similaridade nas experiências vivenciadas por ambos os grupos humanos em torno daquilo que se origina de uma revelação não habitual, mágica decorrente da fé. Um exemplo fortalecedor do maravilhoso no conto “A seiva” diz respeito ao relato de Jorge acerca do batismo de seu bisavô materno:
          … Jorge contou que seu bisavô materno, de nome Kiavulo, fora baptizado com o nome João Patrício pelo padre, por o original ser gentio. Segundo o argumento do agente de Deus na terra, agora que virara cristão, seu nome teria que ser em consonância, nada desses nomes esquisitos que ninguém sabia o que queriam dizer. Kiavulo, que desejava aprender as coisas dos brancos, enfiou-se na catequese. Algum tempo depois, entre outras informações complexas, ficou a saber que lhe era vedado comer carne às sextas-feiras. Ora um dia desses, João Patrício, como então exigia ser chamado pelos outros naturais, caçou uma lebre e preparava-se para a comer, quando a nova consciência o admoestou, por ser o fatídico dia. Mas como a fome não tem nada de cristã nem aprendeu a ler a Bíblia, João Patrício agarrou no bicho já esfolado e antes de o comer meteu-o na água do rio, fazendo o sinal da cruz sobre o mesmo.
          ‘Se Kiavulo ser agora João Patrício, tu kabulo ser agora peixe. Branco pode fazer, mim também’, sentenciou para paz de sua consciência (Morais, 2000, p.32).

          Num ritual que envolve preceitos e quebra de preceitos percebe-se que o imaginário das personagens está imbuído de sensações experimentadas cotidianamente, pois o real maravilhoso se mostra de um lado na religiosidade africana e, por outro lado, no catolicismo, bem como nas práticas culturas africanas diárias. No desfecho do conto depreendemos uma sucessão de fatos extraordinários:
          … Jorge Torres, atordoado pela voluptuosidade inesperada da namorada, logo se recompôs. Apertou-a com paixão e preparou-se para o amor. Com frenesi conseguiu desnudar-se.
          Quanto a Mbuta, já há algum tempo que partira da casa da lenha. Só o corpo restara, cada vez mais abraçado a Jorge.
          Sua essência descia enroscada pelo poste na clareira, ao ritmo do bater abafado das mãos e dos pés das mulheres em seus cânticos de fertilidade.
          Silenciosa, feita serpente maior do que a jiboia, foi apertando os elos pelo corpo do amado que, de olhos cerrados e arfando, gozava o amor e a entrega, sem notar que a asfixia que sentia não se devia ao êxtase do prazer fulgarante e ritmado, mas sim ao aperto premente da cobra em si enroscada.
          Quando sentiu o ar faltar-lhe por completo, no momento excruciante do orgasmo, já roxo, seus olhos esbugalhados viram a enorme cabeça da jiboia a olhá-lo, língua bifurcada silvante.
          Despedindo-se no último beijo de amor, sua cabeça tombou por fim para o lado, o corpo inanimado amassado.
          A serpente desenroscou-se e rastejou silenciosa para o mato, desaparecendo. Ao longe, os contratados tocavam seus batuques dolentes que falavam das saudades da terra e dos familiares (Morais, 2000, p.34).

          Nos contos de Fragata de Morais, o real maravilhoso flui livremente, pois apresenta no primeiro momento situações totalmente normais para só no futuro proporcionar ao leitor um cenário sobrenatural.
O estilo maravilhoso de que fala Carpentier no livro O reino deste mundo (CARPENTIER, 2009, p. 10) não é privilégio das Américas, mas uma herança de uma África que imprimiu suas marcas e traços históricos numa diáspora que se descobre herdeira de uma cosmogonia ainda em construção. As ações ditas insólitas, inabituais tem um arcabouço fundado por um enredo cosmogônico que se desenvolve por meio de uma elaborada estrutura simbólica como aquela percebida nas longas festas do Komba, ritual de passagem de um ente querido em Angola.
A performance experimentada pelos personagens do conto…. …bem como do ritual amoroso do conto ‘O filho”, de Fragata de Morais mostra o corpo em performance, conceito pensando por Paul Zumthor na obra Performance, recepção, leitura (2000). De acordo com o mesmo autor performance se refere de modo imediato a um acontecimento oral e gestual.

O conto “Desencontros” de Fragata de Morais, retrata a história do espírito de um soldado chamado Hernando de La Cuenca y Fraga. Numa perspectiva que remete a um contexto simbólico-religioso, Evaristo, o esposo, presencia a possessão da mulher Filipina:
… Uma noite, em que Evaristo teve o susto da sua vida, ao entrar no quarto deu com Filipina sentada na cama em profundo transe, olhos esbugalhados e em cheliques. Pensando presenciar um ataque de epilepsia, agarrou-a pelos ombros com o fito de a deitar, sendo violentamente sacudido por um abanão que o enviou de encontro à porta do quarto. Estatelado no chão, boca aberta de espanto, ouviu uma voz masculina rouca e profunda a sair pelos lábios da esposa (Morais, 2000, p.38).

Hernando de La Cuenca y Fraga retorna para cobrar um reconhecimento que não teve em vida e usa o corpo de Filipina para obter reconhecimento pelos seus feitos:
Evaristo esfregou os olhos, Filipina olhando-o fixamente e altiva. Parecia-lhe uma blasfêmia ouvir, não as palavras preferidas, mas a voz masculina e roufenha gorgolejando pela boca da esposa.
“E o que tenho eu a ver com isso?”, ouviu-se perguntar.
“A tua mulher terá que divulgar esta minha miséria. É injusto, ninguém se lembra de mim. Andei com o general Pereira de Eça a combater para o engrandecimento da pátria...”
“Minha mulher?!...”, disse, de olhos, agora mais esbugalhados.
“Sim, tua mulher!”
“Meus Deus, que pesadelo!...”, balbuciou Evaristo, esvaído de forças e vontade.
“Pesadelo é o meu. Mandume passeia-se por aqui de cavalo branco, servido por vários Lengas e a cada instante ouve seu nome ser recordado. Quanto a mim, nem a minha família sabe que existi!...”, disse Hernando (Morais, 2000, p. 39).

Os acontecimentos insólitos são aqueles que não ocorrem com frequência, contrários às práticas sociais diárias, logo, causam espanto, estranheza, pois destoam dos hábitos comuns dos indivíduos em suas experiências quotidianas, resultantes historicamente de um sistema de concepções herdadas, correspondentes às formas como os homens se relacionam e transmitem seu conhecimento entre uns aos outros em uma determinada cultura e em um determinado momento das distintas realidades sociais. Diante disso, “é lícito opor o insólito ao natural, e ao ordinário, termos comuns na teoria dos gêneros literários quando se quer falar de Maravilhoso, Fantástico, Estranho, Sobrenatural, Realismo Maravilhoso, Absurdo” (GARCIA, 2007, p.19). Seguindo as explicações do dicionário, podemos ampliar nossas informações acerca daquilo dito natural. Segundo ainda o dicionário, o termo “natural”, significa aquilo que segue a ordem natural das coisas, lógico, próprio do instinto, instintivo, espontâneo, enfim, o que é previsível, provável (FERREIRA, 1986, p. 1608).
O projeto literário angolano contemporâneo conta com várias correntes, uma decorrência das mudanças sociais e políticas. De acordo com Vasconcelos (2009), o período pós-independência é marcado literariamente pelos diversos e múltiplos processos de ruptura conceptual de arte com o tipo de regime e sua falência num universo de múltiplos e de intermináveis experimentalismos. Esse experimentalismo conduziu a trajetória artística dos diversos escritores angolanos. Assim, transitando entre experiências tradicionais e fatos extraordinários Boaventura Cardoso e Fragata de Morais produziram obras representativas das vertentes insólitas da literatura angolana.
Bibliografia:
CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
            CHAVES, Rita, MACÊDO, Tania & MATA, Inocência.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GARCIA, Flavio (Org.). A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
MORAIS, Fragata de. Batuque mukongo. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2011.
O fantástico na prosa angolana. Luanda: Mayamba, 2010.
A sonhar se fez verdade. Luanda: Inic, 2003.
 A prece dos mal amados. Porto: Campos das letras, 2005.
Momento de ilusão. Luanda: Chá de Caxinde, 2000.
Jindunguices. Luanda: Inald, 1999.
Como iam as velhas saber. Luanda: Inald, s.d..
A seiva. Luanda: Inald, s.d..
Amor de perdição. Luanda: Chá de Caxinde, s.d..
18 – RODRIGUES, Tailane. In: GARCIA, Flavio (Org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
19 – TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
20 – ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.