O Senhor das Águas
Uma
crónicalírica molhada de Fragata de Morais. Aquele odor visceral a maresia da
Ilha de Luanda. O marulhar de águas das memórias. O tilintar cristalino dos
humores das relações interpessoais. O peixe evaporado do amor. A odisseia de uma
Angola (esquisita? surpreendente?) esculpida com escopro de sal, sua marca
autobiográfica incrustada no molde: Ilha Eu. Cenários de um drama desenhados
com música clássica, aquela que se (de)compõe com dedos de água de Johann
Sebastian Bach.
José Luís Mendonça
(Cultura –
Jornal Angolano de Artes e Letras)
Kalunga, o Senhor das Águas
Ao ritmo e harmonias de
andamentos musicais, o leitor mergulha nas malhas ficcionais tecidas por
Roberto, o narrador, que revela confissões sobre os dramas de uma insularidade
interior, confrontada com a nudez do mundo urbano à sua volta. Construída por
força do recolhimento vital, trata-se de uma ilha erguida nos arcanos da
psicologia individual.Mas o narrador habita numa outra Ilha, a do Cabo, situada
em Luanda, cuja existência histórica anda há séculos rodeada de histórias e mistérios
de uma espiritualidade ancestral de que Kalunga, o Senhor das Águas, é uma das suas manifestações hierofânicas. A
vocação enciclopédica do narrador torna irrenunciável o diálogo com a
religiosidade das águas, dos mares e dos rios onde reinam
Mutakalombo, Kilamba, Kianda e divindades consagradas em outras culturas.
Luís Kandjimbo, ensaísta e crítico literário
Haveria
pois que esperar, sem receios, sem ansiedade. Por
volta das nove e meia, deitei-me na rede que entermediava os dois coqueiros. Para não ser
surpreendido, suspendi os ventos, nem uma briza que me distraísse e levassa a
minha Ilha Eu para qualquer outro lugar que não fosse aquele onde a colocara. Isso
era fundamental.
Carl Gustav Jung, cuja leitura de
suas obras me impressionou quando mais
jovem, muito mais que as de Sigmund Freud, ambos companheiros de estrada até
uma certa altura, falou-me, sim, digo bem, falou-me, pois foi assim que apreendi,
sobre a imaginação activa, já prevalecente
na era da alquimia. Ao ouvi-lo lendo-o, fiquei a saber que a mesma nos
apresenta uma interacção entre os recheios do consciente, vamos chamar-lhes
assim, através da sua personificação. Portanto, a livre imaginação, o furação
benévolo da intuição e do sentimento e não os impedimentos e castrações da
razão. Numa imagem mais nítida, o cavalgar dos ginetes selvagens pelas
pradarias do oeste norte americano, o palmilhar delirante dos golfinhos pelos
oceanos e seus saltos cabriolantes. A gazela no seu longo salto curvilíneo. A
majestosa sensação do condor a pairar os céus ao sabor das correntes com que Eolo o mimoseia.
Relato-vos o que
me vai na alma, enquanto espero pela declarada visita para que não haja
surpresas, para que esperem o que não esperam. Não vos falo, como já referi, de
quimeras, de sonhos, mas sim de realidades que, se todos tivessem para elas
voltados, seria como a luz do dia na sua banalidade de nascer todas as manhãs.
Não nos assustamos ou espantamos com isso nem por isso, nem nos sentimos
enfermos em busca de cura pelos mesmos motivos, desde os primórdios.
Apenas não poderia
sofrer a vantagem da surpresa, fosse quem fosse que se materializasse na
anunciada visita, carne e osso ou espírito, caber-me-ia
surpreender.
Por momentos
pareceu-me ouvir um restolhar nas raízes dos lilases e sentir uma ondulação
ligeira. Aguardei paciente, não havia pressa ou inquietação.
Às dez precisas,
vejo um buraco em formação, no centro, bem na base da minha Njaro, até dele
emergir um ser diáfano, nem homem nem mulher, sem rosto e coberto de uma longa
capa também translúcida que não me permitia ver se humano ou espírito, talvez
kianda ou outro ser qualquer de que nunca ouvira falar. A seu lado um cão que
mais parecia um jacaré.
Assim que se colocou sobre aos lilases, o buraco fechou-se e tive a
sensação que levitava. Prontamente me levantei da rede, tanto pela surpresa, que me preparara para não ter ou demonstrar, quanto
pelo desejo de não ofender o visitante. Não sabia se o mandava sentar no
luando, cadeira não tinha, ou oferecer-lhe a rede na qual me estirara.
"Não te amoles, estou bem assim de pé",
respondeu, lendo-me a mente.
"Como devo tratá-lo, ou tratá-la. Perdoe-me o espanto".
"Podes chamar-me Muini e não tenho género. De
onde procedo tais coisas são supérfluas, para não dizer dispensáveis".
Deslizou à volta da ilha três vezes e por fim levitou
sobra a montanha brilhante, a Njaro que eu forjara com tanto carinho. Fosse a
montanha uma oliveira, teria a certeza de uma aparição da senhora de Fátima ou,
como existem tantas e tantas, tantas quanto a imaginação dos que delas
necessitam, seria outra senhora qualquer. Da Muxima, do Monte, de Kalumbu e,
porque não, a senhora da Ilha do Cabo?
"Tua arrogância merece castigo", disse, por
fim
"Minha arrogância, senhora Muini?" - decidi
dar-lhe o género feminino - "Não entendo, não sei de que fala",
contestei, meio assustado, nunca me vira ou achara arrogante.
"Trago uma mensagem de Mutakalombo, que se sente
verdadeiramente agastado contigo pela usurpação do poder que te concedeste das
águas e dos ventos. Ele é o único capaz e destinado a tal. Com que autoridade
te arrogaste esse privilégio? Dá-te por feliz que o feroz guerreiro que me acompanha
se limita a olhar-te", apontou para o cão jacaré.
Mas que privilégio, pensei? E que guerreio, só via um
jacaré a dar-se ares de canídeo, ou vice-versa? Todos nós humanos somos donos
do pensar, patrões dos rumos que incutimos à nossa imaginação, criadores sem
par, ou nunca teriam existido Leonardo da Vinci, Auguste Rodin, Benjamin Franklin,
Ernest Everett Just, Madame Curie, Georges Meliés, Charles Henry Turner, entre tantos e tantos mais.
O ser que inventou a roda, era arrogante?
Tivesse existido à altura o Prémio Nobel, tê-lo-ia
ganho, por ser a maior descoberta da Humanidade até hoje. Sem essa roda a girar
à frente de um mui feliz troglodita, como as crianças da minha infância faziam
com os aros dos toneis de vinho, não haveria Michelangelo Buanarroti, Alexander Fleming,
Percy Julian, Patricia Bath, Thomas Edison, Henry Ford, numa lista quase
infindável.
Quem se apropriou do fogo pela primeira vez, seria
hoje multibilionário, receberia no mínimo três triliões de tweets por dia. Sua página do Facebook seria o facebook inteiro,
seria o rapaz ou rapariga mais caliente da
terra, ditaria trends e modismos.
"Que privilégio?”, indaguei admirado.
"Tentas pairar acima de todos com essa imaginação
que te leva incluso a mencioná-lo. Ele, que deve viver nos fundos marinhos em
tranquilidade a cuidar dos seus afazeres. Reverbera lá em baixo o deslizar
desta ilha inexistente, e conhece-se o teu desejo de domínio dos ventos, como
se fosse possível. Terás que parar, a imaginação esguia é pertença única das
divindades, não dos mortais. Com os deuses ela perdura a todo o sempre, com vós
nem enterrada é no dia do derradeiro adeus, unicamente as vossas vaidades
mundanas."
Revoltei-me, mas contive-me.
O que me estava a pedir era a auto-castração.
Nunca conseguiria viver na racionalidade, na coerência
do raciocínio.
Minha fortuna era a fantasia desabrigada e tão
delicada que nunca se dera ares de tufão, de estrondos relampejantes e
assustadores. Como me pediam isso, quando pelas cavernas diversas do Mundo ainda
hoje lemos estórias infindáveis e sugestivas, plenas de cores e intenções,
desenhadas por sonhadores?
"Mas que mal fiz a Mutakalombo, de quem é enviada?
"Infiltraste-te no seu Mundo, arrogaste-te
propriedades de que do mundo visível não são, não podem pertencer…
Ilha Eu?... Mas o que é isso?...
Esses pedaços de raízes de lilases unidos entre si e
que só na tua mente existem, feitos ilha? Vais a outra divindade longínqua e
roubas-lhe a capacidade de soprares ventos a teu bel-prazer? E perguntas que
mal fizeste"?
"E por tal mereço castigo? " - contra-ataquei
com violência propositada para que minha indignação reverberasse nos fundos do
mar e Mutakalombo ouvisse - "Os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, o grego Esopo
com suas fábulas, Jean de La Fontaine, Charles Perrault, Hans Christian
Andersen, Lewis Carroll, Walt Disney, esses sim mereceriam digno castigo pois
foram incentivadores ao desenvolvimento da imaginação das crianças mundo afora,
deram-lhes asas para voarem para onde e quando desejassem. O que são afinal as
noites de 1)sunguila pela África nossa?
Sinto-me ofendido".
"Esses, não penetraram no mundo invisível.
Limitaram-se a colocar parvalhices como lobos a comerem, literalmente,
avozinhas e por consequência a sofrerem cesarianas para as resgatar; jovens
encalhadas a viver com sete anões eunucos numa mina nas montanhas; corvos a
falarem com raposas comedoras de uvas e ainda por cima verdes; meninas a caírem
por tocas de coelho e a engajarem em falas com rainhas de naipes de cartas e
ovos sentado em cima de um muro. Tenho que usar este tipo de linguagem para te
fazer ver que não afrontaram mundos de divindades aquáticas ou outras, ainda
não percebeste a diferença"?
"Para ser sincero não. As ferramentas que usaram
e que eu uso são as mesmas, só que os resultados finais diferentes. Eles
entretiveram um mundo de crianças, eu de adultos, ambos com a imaginação,
__________
1)
Sunguilar: Serão durante o qual se contam
estórias, provérbios, adivinhas, à luz das fogueiras.
mesmo se lá em baixo, de onde vem, sejam percebidas de
maneiras diferentes. Raposas a falar com corvos sobre uvas verdes não é tão
diferente de eu ter a minha Ilha Eu. Por que motivo tenho que abdicar, contra
vontade, de um mundo que só o uso quando me convém"?
"Porque assim é. Mutakalombo é soberano sobre o
mundo das águas marinhas. Tudo e todos lhe devem obediência. As marés sobem e
descem a seu comando. O Sol levanta-se e põe-se nele, assim como a lua e as
estrelas".
Comecei a sentir-me mais à vontade, mais seguro, a
divindade acompanhada de seu cão jacaré mostrara-me a saída.
Do mesmo modo que criei esse deus ditador, assim o
poderia eliminar com a maior das facilidades, poderia destitui-lo. Bastaria
eliminá-lo do meu pensamento, dos caminhos imaginativos de minha vida, afogá-lo
sem piedade em suas próprias águas.
Por que não poderia recomeçar e recriar o meu Ndjaro,
não de cinco metros de altura, mas com os mais de cinco mil que tem? Não
revestido de guano de gaivotas mas sim de neves perpétuas, enquanto eu vivesse?
Não foi esse o húmus de Platão? Não acreditara ele que
o que se capta com os olhos da alma são as formas não físicas e que acabam por
ser aquelas que contêm o fundamento da realidade, diferentes daquelas que se
captam com os olhos da cara? Onde residia então a diferença?
"O que nós de outros mundos gostamos de observar,
é a perene infantilidade dos humanos. Pensam-se soberanos do Universo, mágicos
da Ciência. Creem-se próximos dos deuses, menores ou maiores. O que acabaste de
pensar é a maior infantilidade que hoje ouvi. Afogar Mutakalombo em suas
próprias águas? Devastares esta pequena saliência coberta de fezes de aves que
Mutakalombo comanda? Esqueces que elas se alimentam dos seres vivos que vivem
nos mares? Nada neste Mundo se encontra destituído de um ser
interior."
Recolhi-me
novamente, esquecera que a minha mente podia ser lida, no fundo nem precisava
de falar, bastava-me pensar. Com que castigo iria ser punido? Se mostrasse
humildade, talvez conseguisse escapar com uma pena menor.
"Não
vais escapar de nada. Vim com uma missão e pela fenda que me viste entrar, será
pela fenda que me verás sair e, se tiveres discernimento, será esse o momento
que a tua Ilha Eu desaparecerá para dar lugar a qualquer outra coisa racional.
Por vontade deste guerreiro que me acompanha, já estavas nas suas garras a
caminho das profundezas dos mares."
"Que
me resta então cumprir, qual a minha sentença", tentei não demonstrar
condescendência na pergunta.
Desceu
do meu Njaro, imaculada, e postou-se diante mim.
Se
tivesse rosto, olhá-la-ia nos olhos, com bravata, como o condenado à morte que
deseja fumar o seu último cigarro ou cantar uma canção interminável. O chamado
guerreiro, esse sim tinha uma forma e corpo concretos, só que impossível de determinar
o que era, por vezes cão, outras, jacaré.
"Tenho
ordens para ser leniente contigo, apesar de tudo é a primeira vez que és
obrigado a uma confrontação interna séria. Terá que ser pedagógica, por tal. A
partir de agora, entras no mundo da racionalidade e do racional. Sem entrares
em filosofias de distinção da racionalidade. Terás que ser, durante um ano uma
pessoa que age em conformidade com a razão, a tua ilha é aquela na qual vives,
a Ilha do Cabo, não há diferente. Se lá em baixo for ouvida outra coisa
qualquer desigual, se começares a sonhar acordado novamente, a criar mundos
paralelos não existentes, considera-te habitante do reino de Mutakalombo".
Dito
isto, esfumou-se, com o seu guerreiro, pela fenda por onde entrara. Nem ousei pensar
no que era, ou o que era e onde é que se encontrava a tal fenda. Começara o meu
exílio, a minha via cruci amarga, teria que me autoflagelar.
QUARTO ANDAMENTO
UM FANTASMA DE PESO
Grave
Após
este encontro com a enviada do dono dos fundos marinhos, que ainda não analisei
convenientemente, é natural que me sinta
agastado por ter sido ludibriado por mim próprio. Não sei se por ter edificado
com esmerado denodo uma ilha particular, se por me ver obrigado a vaporizá-la
de todos os mapas do Mundo, em que não constava.
Vejo-me
assim a tempo integral no planeta da racionalidade, coisa estranha e certamente
para doidos varridos e gente sem emoções, como a desalmada da minha professora
de matemática que me falava numericamente em línguas estranhas, piores do que
aquelas que ouço ocasionalmente nos cultos evangélicos. Essas, como não são
racionais, até me parecem entendíveis e aceitáveis, de facto pertencendo a um
espírito qualquer, talvez até santo.
Será
que desde que descemos das árvores, teremos agido como se não houvesse
espiritualidade intrínseca?
Inspiração?
Visões?...
Sonhos?....
Os
nossos anseios, devaneios e sabe-se lá mais o quê, não pertencem aos domínios
dos diversos deuses e demais divindades que criámos ao longo de milénios, do
mundo da paixão, portanto? Deuses amigando humanos e a gerarem semideuses;
bichos acasalados com deuses a gerarem monstros impenitentes para oprimir e nos
manter permanente em expiação, em permanente purgação?
Desejar
ficar rico até mais não, como Midas da Frígia que, na sua ganância, em tudo que
tocava virava ouro, pertence à racionalidade humana?
O
que levará então as sociedades primitivas ainda existentes, a não se preocuparem
minimamente com o vil metal a não ser para decoração, e a não conterem em si
esse germe inexplicável e nefasto de uma reacção que, no fundo, quando
ultrapassa as fronteiras aceitáveis do bem-estar pessoal e colectivo, se torna
terrivelmente amoral? Não eram os Incas donos de todo o ouro do Mundo à sua
volta?
Se
vivemos com paixões, com ódios, ressentimentos que nos conduzem a gestos e
acções as mais irracionais, como eliminar esse aspecto, essa condição humana? Impossível,
a racionalidade está contaminada irremediavelmente pela irracionalidade, nunca
o inverso. Somos animais duais, na melhor das hipóteses. A mesma criatura
consegue ser Mozart e, na outra face, Hitler.
Mas
como me proibi próprio de ser rei incontestado de uma ilha denominada Eu, de
viver a tranquilidade que me serve de ponte para todo e tudo o que segue, serei
coerente e irei tentar esta nova e periclitante fase de autodomínio emocional.
Não por receio a Mutakalombo, quem o criou e permitiu sua entrada na minha Ilha
Eu, fui eu próprio. Se desejasse algum dia fazer-me mal, também teria os
anticorpos necessários, o antídoto não para me defender e safar, mas sim para
me precaver de entrar num Mundo em que
acabaria por perder o controle dos botões do comando.
E
é essa mesma falta de racionalidade que me leva a apregoar a minha não crença
em bruxarias mas, pela superstição, pela via humana do temor ao desconhecido,
reservar-me a dúvida de sua existência, com ou sem vassouras freudianas em
cavalgada pelos domínios que maleficiam. Todos nos reservamos dessas e outras
dúvidas ligadas à ancestralidade, ao passado comum primordial, ou não seríamos
humanos.
Ainda
que mergulhado num mar escuro e profundo de dúvidas, achando que me perdi em um
qualquer lugar, vou cumprir meu decreto agora imperial.
Quero
conhecer as fronteiras do meu auto-domínio.
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