quinta-feira, 16 de julho de 2020

VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA ANGOLANA

VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA ANGOLANA



Jurema Oliveira - Professora da Universidade Federal do Espírito Santo na área de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa, Pós-Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense Uff, desenvolve pesquisa na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa

Resumo: Depreender na literatura angolana as vertentes da ficção insólita contemporânea.

Palavras-chave: tradição, oralidade e insólito

O corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do mundo (ZUMTHOR, 2000, p.90).
O presente trabalho tem por objetivo discutir as vertentes da ficção insólita angolana. Para esse estudo escolhemos as obras dos autores (…) e Fragata de Morais.

           … Fragata de Morais escreveu Como Iam as Velhas Saber (1983A Seiva (1995)Jindunguices (1999), Momento de Ilusão (2000), Amor de PerdiçãoAntologia Panorâmica de Textos Dramáticos (2003)A Sonhar se Fez Verdade (2003), A Prece dos Mal Amados (2005)O Fantástico na Prosa Angolana (2010) e Batuque Mukongo (2011).
O século XX presenciou modificações históricas importantes no cenário mundial e em particular nos países africanos de língua portuguesa. O fenômeno violência nasce do desejo de dominação de um homem sobre todos os homens, mas, de acordo com Hannah Arendt, a violência destrói o poder, não o cria. Em contrapartida, as ações violentas fazem emergir no cenário social experiências insólitas, não habituais do ponto de vista cultural. A violência neutraliza toda e qualquer possibilidade de os homens se organizarem e viverem em harmonia e consequentemente abre espaço para o luto visível nas imagens refletidas num espelho d’água embaçado. Estes fatos constituem o móvel, os eventos sustentadores do gênero insólito:
           [...] o mundo organizado de repente se desorganiza, sobrevém então o desequilíbrio e as personagens oprimidas passam a viver o clima do absurdo, isso então seriam as características de um ‘insólito contemporâneo’ que lida com o coletivo e a vida pública, problematizando-os (Rodrigues, 2007, p.92).
Nessa perspectiva, os eventos não ocasionais, violentos, são postos em movimento por uma língua ficcionalizada que desloca as falas de seu lugar habitual, dando nova roupagem à ideia de apagamento, de censura promovida pelo discurso oficial, e abrem espaço à circulação da heterogeneidade identitária e discursiva, numa demanda múltipla dos eventos insólitos que rondam as experiências humanas diárias dos “pontos-sujeitos”.
Para Carpentier, o maravilhoso constitui-se na modificação da realidade. Assim, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé, uma crença. Os que não acreditam em santos não podem curar-se com milagres de santos:
          [...] o maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou especialmente favorecedora das inadvertidas riquezas, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de ‘estado limite’ (CARPENTIER, 2009, p. 9).
A experiência inabitual de que fala Carpentier presentifica-se no mistério que envolve a árvore, mobilizando, assim, toda a comunidade. No plano maravilhoso, é comum encontrarmos expressões ou termos que remetem os fatos ocorridos ao mundo sobrenatural, sem uma explicação racional. De acordo com Todorov: “O fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranhos” (TODOROV, 2004, p. 100)…
… O maravilhoso modifica o cenário, gera um estranhamento e estabelece novas categorias para a realidade. Sendo assim, o conto “O filho” do livro Momentos de Ilusão, de Fragata de Morais, nos apresenta uma experiência inusitada que é uma gravidez de sete anos: “Há sete anos que o filho lhe remexia as entranhas. Não havia dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro, que lhe falava em silêncio penoso”. A narrativa de “O filho” se desenrola valorizando o sobrenatural e o erotismo, pois o esposo ao cumprir o ritual afetivo conduz o desfecho do conto:
          … Na sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não de febre, mas de desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.
A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.
“Que situação ridícula, não posso”.
Todavia os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso do plasma. (...)
Foi, na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.
Do carcomido ventre da esposa saiu um sardão vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas (Morais, 2000, p. 13).
          Numa perspectiva numerológica, o sete é o número místico por excelência em todas as religiões e seitas, desde as mais primitivas as mais modernas. O sete é o número da criação. É também o número que indica a relação viva entre o divino e o humano, entre o bem e o mal.

No conto “A Seiva”, da mesma obra, Fragata de Morais metaforiza a fertilização da terra, símbolo maior, e a fertilização da mulher. Os personagens centrais nutrem um amor com “raízes na inocência rural e na crueldade terrível da natureza” (Morais, 2000, p.30), pois “o relâmpago quando desvirgina o firmamento, seu grito de prazer troveja pelos ares, derrubando árvores, casas e mesmo gente. Nada se lhe opõe no caminho da fertilização da terra. Assim seria com ele”(Morais, 2000, p.30).  Essa força sobrenatural oriunda do amor era ponderada constantemente por Mbuta que:
          … Lembrava as longas conversas com Jorge sobre o que seria tradição, usos e costumes antigos, face à Bíblia, à palavra simples, mas pesada dos padres.
          Convencera-se por fim que, feitas bem as contas, seria trocar um feitiço por outro. Abandonar a crença dos antepassados para abraçar a crença do feiticeiro dos brancos que curava leprosos com um simples toque de mãos, punha paralíticos a caminhar com uma mera vontade e palavra e, coisa jamais vista na tradição dos negros, ressuscitava mortos. Pesadas bem as coisas, de facto não havia motivos para reter a crendice clânica. O que se perdesse por um lado, a Bíblia reporia por outro, era como estava escrito olho por olho, dente por dente (Morais, 2000, p.32).
         
O questionamento feito por Mbuta acerca das tradições negras e brancas nos permite ler uma similaridade nas experiências vivenciadas por ambos os grupos humanos em torno daquilo que se origina de uma revelação não habitual, mágica decorrente da fé. Um exemplo fortalecedor do maravilhoso no conto “A seiva” diz respeito ao relato de Jorge acerca do batismo de seu bisavô materno:
          … Jorge contou que seu bisavô materno, de nome Kiavulo, fora baptizado com o nome João Patrício pelo padre, por o original ser gentio. Segundo o argumento do agente de Deus na terra, agora que virara cristão, seu nome teria que ser em consonância, nada desses nomes esquisitos que ninguém sabia o que queriam dizer. Kiavulo, que desejava aprender as coisas dos brancos, enfiou-se na catequese. Algum tempo depois, entre outras informações complexas, ficou a saber que lhe era vedado comer carne às sextas-feiras. Ora um dia desses, João Patrício, como então exigia ser chamado pelos outros naturais, caçou uma lebre e preparava-se para a comer, quando a nova consciência o admoestou, por ser o fatídico dia. Mas como a fome não tem nada de cristã nem aprendeu a ler a Bíblia, João Patrício agarrou no bicho já esfolado e antes de o comer meteu-o na água do rio, fazendo o sinal da cruz sobre o mesmo.
          ‘Se Kiavulo ser agora João Patrício, tu kabulo ser agora peixe. Branco pode fazer, mim também’, sentenciou para paz de sua consciência (Morais, 2000, p.32).

          Num ritual que envolve preceitos e quebra de preceitos percebe-se que o imaginário das personagens está imbuído de sensações experimentadas cotidianamente, pois o real maravilhoso se mostra de um lado na religiosidade africana e, por outro lado, no catolicismo, bem como nas práticas culturas africanas diárias. No desfecho do conto depreendemos uma sucessão de fatos extraordinários:
          … Jorge Torres, atordoado pela voluptuosidade inesperada da namorada, logo se recompôs. Apertou-a com paixão e preparou-se para o amor. Com frenesi conseguiu desnudar-se.
          Quanto a Mbuta, já há algum tempo que partira da casa da lenha. Só o corpo restara, cada vez mais abraçado a Jorge.
          Sua essência descia enroscada pelo poste na clareira, ao ritmo do bater abafado das mãos e dos pés das mulheres em seus cânticos de fertilidade.
          Silenciosa, feita serpente maior do que a jiboia, foi apertando os elos pelo corpo do amado que, de olhos cerrados e arfando, gozava o amor e a entrega, sem notar que a asfixia que sentia não se devia ao êxtase do prazer fulgarante e ritmado, mas sim ao aperto premente da cobra em si enroscada.
          Quando sentiu o ar faltar-lhe por completo, no momento excruciante do orgasmo, já roxo, seus olhos esbugalhados viram a enorme cabeça da jiboia a olhá-lo, língua bifurcada silvante.
          Despedindo-se no último beijo de amor, sua cabeça tombou por fim para o lado, o corpo inanimado amassado.
          A serpente desenroscou-se e rastejou silenciosa para o mato, desaparecendo. Ao longe, os contratados tocavam seus batuques dolentes que falavam das saudades da terra e dos familiares (Morais, 2000, p.34).

          Nos contos de Fragata de Morais, o real maravilhoso flui livremente, pois apresenta no primeiro momento situações totalmente normais para só no futuro proporcionar ao leitor um cenário sobrenatural.
O estilo maravilhoso de que fala Carpentier no livro O reino deste mundo (CARPENTIER, 2009, p. 10) não é privilégio das Américas, mas uma herança de uma África que imprimiu suas marcas e traços históricos numa diáspora que se descobre herdeira de uma cosmogonia ainda em construção. As ações ditas insólitas, inabituais tem um arcabouço fundado por um enredo cosmogônico que se desenvolve por meio de uma elaborada estrutura simbólica como aquela percebida nas longas festas do Komba, ritual de passagem de um ente querido em Angola.
A performance experimentada pelos personagens do conto…. …bem como do ritual amoroso do conto ‘O filho”, de Fragata de Morais mostra o corpo em performance, conceito pensando por Paul Zumthor na obra Performance, recepção, leitura (2000). De acordo com o mesmo autor performance se refere de modo imediato a um acontecimento oral e gestual.

O conto “Desencontros” de Fragata de Morais, retrata a história do espírito de um soldado chamado Hernando de La Cuenca y Fraga. Numa perspectiva que remete a um contexto simbólico-religioso, Evaristo, o esposo, presencia a possessão da mulher Filipina:
… Uma noite, em que Evaristo teve o susto da sua vida, ao entrar no quarto deu com Filipina sentada na cama em profundo transe, olhos esbugalhados e em cheliques. Pensando presenciar um ataque de epilepsia, agarrou-a pelos ombros com o fito de a deitar, sendo violentamente sacudido por um abanão que o enviou de encontro à porta do quarto. Estatelado no chão, boca aberta de espanto, ouviu uma voz masculina rouca e profunda a sair pelos lábios da esposa (Morais, 2000, p.38).

Hernando de La Cuenca y Fraga retorna para cobrar um reconhecimento que não teve em vida e usa o corpo de Filipina para obter reconhecimento pelos seus feitos:
Evaristo esfregou os olhos, Filipina olhando-o fixamente e altiva. Parecia-lhe uma blasfêmia ouvir, não as palavras preferidas, mas a voz masculina e roufenha gorgolejando pela boca da esposa.
“E o que tenho eu a ver com isso?”, ouviu-se perguntar.
“A tua mulher terá que divulgar esta minha miséria. É injusto, ninguém se lembra de mim. Andei com o general Pereira de Eça a combater para o engrandecimento da pátria...”
“Minha mulher?!...”, disse, de olhos, agora mais esbugalhados.
“Sim, tua mulher!”
“Meus Deus, que pesadelo!...”, balbuciou Evaristo, esvaído de forças e vontade.
“Pesadelo é o meu. Mandume passeia-se por aqui de cavalo branco, servido por vários Lengas e a cada instante ouve seu nome ser recordado. Quanto a mim, nem a minha família sabe que existi!...”, disse Hernando (Morais, 2000, p. 39).

Os acontecimentos insólitos são aqueles que não ocorrem com frequência, contrários às práticas sociais diárias, logo, causam espanto, estranheza, pois destoam dos hábitos comuns dos indivíduos em suas experiências quotidianas, resultantes historicamente de um sistema de concepções herdadas, correspondentes às formas como os homens se relacionam e transmitem seu conhecimento entre uns aos outros em uma determinada cultura e em um determinado momento das distintas realidades sociais. Diante disso, “é lícito opor o insólito ao natural, e ao ordinário, termos comuns na teoria dos gêneros literários quando se quer falar de Maravilhoso, Fantástico, Estranho, Sobrenatural, Realismo Maravilhoso, Absurdo” (GARCIA, 2007, p.19). Seguindo as explicações do dicionário, podemos ampliar nossas informações acerca daquilo dito natural. Segundo ainda o dicionário, o termo “natural”, significa aquilo que segue a ordem natural das coisas, lógico, próprio do instinto, instintivo, espontâneo, enfim, o que é previsível, provável (FERREIRA, 1986, p. 1608).
O projeto literário angolano contemporâneo conta com várias correntes, uma decorrência das mudanças sociais e políticas. De acordo com Vasconcelos (2009), o período pós-independência é marcado literariamente pelos diversos e múltiplos processos de ruptura conceptual de arte com o tipo de regime e sua falência num universo de múltiplos e de intermináveis experimentalismos. Esse experimentalismo conduziu a trajetória artística dos diversos escritores angolanos. Assim, transitando entre experiências tradicionais e fatos extraordinários Boaventura Cardoso e Fragata de Morais produziram obras representativas das vertentes insólitas da literatura angolana.
Bibliografia:
CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
            CHAVES, Rita, MACÊDO, Tania & MATA, Inocência.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GARCIA, Flavio (Org.). A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
MORAIS, Fragata de. Batuque mukongo. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2011.
O fantástico na prosa angolana. Luanda: Mayamba, 2010.
A sonhar se fez verdade. Luanda: Inic, 2003.
 A prece dos mal amados. Porto: Campos das letras, 2005.
Momento de ilusão. Luanda: Chá de Caxinde, 2000.
Jindunguices. Luanda: Inald, 1999.
Como iam as velhas saber. Luanda: Inald, s.d..
A seiva. Luanda: Inald, s.d..
Amor de perdição. Luanda: Chá de Caxinde, s.d..
18 – RODRIGUES, Tailane. In: GARCIA, Flavio (Org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
19 – TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
20 – ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

OS VENTOS AO SUL - Editora Mayamba


Livro a ser publicado brevemente


A saga de uma família que tem origem no Porto em 1813 e cujo protagonista ao enfrentar o Poder é  deportado  para Luanda a fim de cumprir uma pena de degredo de cinco anos.
Uma vez cumprida, viaja para Benguela onde é apoiado por um rico comerciante numa missão de contacto com os povos mais ao Sul, territórios em que nenhum homem branco houvera ainda chegado.
Na região dos povos Ambó é capturado no Kwamatu, tendo aí falecido e deixado vasta prole, o  que dá aso ao trama do romance  de forte pendor histórico e cultural.

A saga termina em 1917 com a morte do derradeiro descendente da família inicial, agora guerreiro do reino Ovakwamati a lutar  ao lado do  Rei Ovakwanyama Mandume Ndemufayo.

Excerto:

Ainda estava de cócoras, por trás de uma árvore, quando desabou sobre o acampamento um alvoroço de vozes, gritos e tiros, num claro salve-se quem puder. Puxou rapidamente as calças para cima e correu para trás de um morro de salalé entre duas árvores, tentando observar o que se passava, agachado. Viu gente vestida de panos curtos, muitas azagaias, punhais, porrinhos e algumas, poucas, armas. Três dos carregadores jaziam no solo, mortos certamente, notou que nenhum deles era Kandjimbu e o resto conseguira fugir. Os burros zurravam assutados, alguns aos pinotes sacudindo a carga que já fora parcialmente colocada sobre eles, alguma já trafegando de mão em mão entre gritos de alegria. Manteve-se estático, ninguém se preocupava em saber dele, pelo menos assim julgava, e sempre seria melhor regressar a Benguela sem nada, do que deixar ali a vida. No meio de toda aquela azáfama, lobrigou Hamutenya, já com alguns panos ao ombro e vários colares de missangas ao pescoço e enroladas nos pulsos. Alguém trouxe o que poderia ser considerado uma cadeira, mais um banco, e viu um homem sentar-se nele, certamente o chefe, o Soma. Aos poucos a ordem foi-se restabelecendo e viu Hamutenya ser chamado junto do homem sentado e receber instruções.
"Sô Tônio, pode vir", gritou várias vezes, em direcções diferentes.
Esperou por uma resposta, que não veio e repetiu o chamamento. António Labrego ficou sem saber o que fazer, onde estava não lhe oferecia garantia alguma, bastava seguirem a pista a partir da sua tenda, as marcas das botas prontamente seriam reconhecidas e talvez viesse a sofrer consequências mais gravosas. Mesmo assim, necessitando de tempo para pensar, não respondeu.
Viu o chefe sorrir e a beber alguma da aguardente roubada. Isso deu-lhe a determinação de se apresentar, preferia falar com ele sóbrio de que já embriagado. Notou que tresandava a fezes, não se limpara e sem se levantar para não se tornar alvo gritou, em umbundu, como sinal de esperança, desejando que esse povo não fosse odiado por eles.
1)  Hamutenya, ndi-si kulo". (Hamutenya, estou aqui)
Ouviu uma gritaria generalizada de contentamento e observou o chefe a sorrir, sinalando a Hamutenya para o ir buscar. Por fim levantou-se, tentou demonstrar porte digno mas não altivo, compôs a roupa e sentiu que a diarreia se evaporara. Deu uns passos à frente para se revelar e quando notou que fora visto estancou à espera. Hamutenya, trajado como os outros, vestia um pano amarrado à cinta e que se dobrava sobre si mesmo e sobre este, amarrada, uma pele de boi preto, com um outro pano mais pequeno a tapar-lhe as nádegas. Carregava uma longa azagaia, bem como a sua arma e um punhal á cinta. Aproximou-se a António Labrego, sorriu-lhe e indicou que o seguisse. Assim foi levado à autoridade sentada, que se manteve impressionada a olhar.
Aguardou, braços pendentes e tentando não revelar qualquer emoção.
(2) “Ke na sha oshipa... ke na sha oshipa…” (ele não tem pele), saiu da boca do Ohamba a exclamação atónita.
Recuaram assustados e o cimbanda foi chamado para explicar como é que um homem, caso fosse mesmo homem, não tinha pele.
“Ano yee omhepo yashituka ta yeende muunyuni wovanamwenyo?” (ele não tem pele, será um espítitpo a vaguear no mundo dos vivos?) insistiu o Ohamba a olhar para o cimbanda.
Atiraram-lhe um pau para verificar se o atravessava.
Quando satisfeitos que era um ser humano igual, o chefe agarrou em vário colares de missangas, observou a qualidade, bebeu mais um gole da aguardente e falou para Hamutenya, que traduziu.
“Ohamba Shikwete Ndesipakwa dizer branco trazer coisas boas. Branco aqui não chegar, sô Tônio querer quê, Ohamba preguntar?"
António Labrego sorriu e como sabia que bater palmas era sinal de respeito, assim o fez três vezes antes de falar, curvando-se ligeiramente.
"Diz ao grande chefe que vim para fazer comércio, trocar coisas, o que aqui trago por marfim, bois, cera e mel, como bens sabes, saíste de Benguela comigo. Se for do agrado dele, poderemos continuar estas trocas, uma mão lava a outra. Nada mais aqui me trás, como bem sabes, repito."
Hamutenya traduziu tudo, esperando António Manuel Labrego que ele fosse fiel no verter de suas palavras. Ouviu novamente o chefe a falar para Hamutenya, que se virou para ele.
"Ohamba Shakwete falar sô Tônio tratar bem gente dos carregador, eu contar, maji branco nunca vir aqui, primeira vez. Chefe dizer sô Tônio vir com chefe e viver no 1) ehumbu (aldeia, local onde vivem as famílias Ambó). Regressar no Benguela não pode, branco não pode voltar aqui."
"Diz no chefe que aceito e vou ficar a viver aqui.", achando ser essa a resposta mais prudente por agora.
Quando as suas palavras foram traduzidas, novamente se ouviram gritos de contentamento por parte de muitos.
Ficou sem saber o que fazer de seguida, certamente manter-se como estava e aguardar. Veio-lhe então à mente, talvez como compensação, que o seu Natal iria ser passado sozinho entre gente que disso nada sabia, se de facto o mantivessem vivo. Pediu que tudo o que tivesse na sua tenda, seus pertences, pudesse ser levado com ele ao que o chefe anuiu mandando-lhe executar a tarefa com Hamutenya e indicando um outro que se encarregaria de a colocar nos burros. Pensou na mula e decidiu de imediato que a iria oferecer ao chefe. Para ele pouco lhe serviria a partir de agora.



quarta-feira, 2 de outubro de 2019

UM CANTO AO MEU CONGO (Edição bilingue - Português /Kikongo


LANÇAMENTO NACIONAL NO DIA 01 DE NOVEMBRO DE 1919 EM LUANDA 
E NO DIA 08 DE JANEIRO, DIA NACIONAL DA CULTURA, EM MBANZA KONGO, CAPITAL DO ANTIGO REINO DO KONGO, EM CERIMÓNIA PROVINCIAL.



A SENHORA QUE FALAVA COM SANTO ANTÓNIO

Eu, Kimpa Vita a condenada, vou falar, meu coração abrir
Ouço as vozes no pátio, plenas de ódio, tanto as dos meus
Quanto a do estranho que chegou pelo mar e se consentir
Entrar no nosso Rio Maior. Soam a grasnar de corvos ateus

Grasnam no topo das árvores, um grasnar surdo incessante,
Ao desafiarem medos que não sofro, sei e sinto-me revestida
Da verdade de manto áureo e quando a noite desce possante
Sobre o Mundo, envolve-me a sua sombra baça e desabrida

Trevas que se movimentam no mal e no pecado, transfigurados
Na coroa e vestes do Cristo Rei que fingem recitar, sem revolta
Infelizes, sob estas vestes serviçais do comércio,  aprimorados,
Ao tráfico da venda de almas tranquilas que partem sem volta

Almas que falam em meus sonhos, de mares plenos de monstros
Ou ainda da pilhagem do ouro e prata inúteis, mas que lhes valha.
E de fendas onde naves que as carregam se perdem, sem choros
Tanto sangue mártir, sacrificados que à garganta se pôs a navalha

Serei morta por ascender e com Cristo falar, do fundo do coração
Vozes em repique, tal os sinos a badalar da torre cerca da igreja,
Ter medo delas porquê? Não posso temer, implorar a confissão
De um pecado que é deles. Que fazer , pois que então assim seja.

Meu, é o espírito da mbemba que escapa livre pela pequena fenda
Deste mísera prisão. Meu é o uivar do desespero que não esfuma
Desespero do povo que os reis atraiçoam, subjugados, sem emenda
Não nos burlemos, oiçam, Mbemba kuzungana, tululu kiandi mfuma!     



  MPELO WAKANGALA  KONDO KWAZOLA

 

 

  

Ah Kongo dya mvu ya mvu, mu wutukanga ovana batunda .

Muna ngangu a meso, vana vakwilu dya nzadya, o Diogo Cão wamona ye wa visa.

Enzitusu aku yi kuwinta muna nzadya maza makondwa ensuka ye ma lulendo.

Muna kanga muna ngeye yakuna yalala, mbosi ka tomboka yowonga.

 

 

Ah, kongo ngeye wamona engutuka ya m’pelo ona  wayikitula kimpumbulu.

Muna lutumu lwa Nimi a Nkanga wa vweza on’toto wanzolwa.

Mpasi kalomba kuna kwa papa enzengelo a kibundu kya ntangwa yayina.

Kya tulwa kwa nzenza za tuka kwa mbu, zina za toma kutengola emenga.

Luzeye, Nsaku Ne vunda, m’pelo atunda, wayenda muna caravela,
 kuna Brasil bonso Mvuala ya ludi/ kyeleka ya n’kongo.

Ndwakilu yakala ya mpasi muna nata ensangu za vimpi.
Kwa ndyona wa nuvang’ e mim’pelo mya mputuki o muzunga,
 ana bakondwa o ma vimpi.

Ntangu zankaka kondwa kwa makani, kondwa kwa kyememe
kya sisa ensi aku ya mbote, ya nkuni, mavungu ye fuka,
yo kembesa akulu aku. Wa yenda mu sadila papa ye n’tinu
mya Mputu muna kazu kyaku kya sia emfoko muna kinkita

 

 kya wana wantu bafwani kyaku; kebena mpe zi ntudi ko.

O kalunga watumbuka yo vananga wonga, wazala ye yisimbi              

ye yinzambi-nzambi. Wanata muna nsi za nda ye za nkwamusu,

ikuna akongo bafwididinge/ bafwilanga ye nkuba, zembekwa,

babangikwanga mu ntyakilu za mpila mu mpila. Bavatumunga

nsi zawantu an’kaka momo, mpe bafwididinge  yo bangikwa.

 

 

 

Tuka Brasil wanatuka te ku Europa ye wakomwa

mu boloko kwa Pilato (mapilatu) Wa bangikwa kansi

watatamana kaka mu n’kanda Nzambi  ye kuluzu dya mpuluzu.

Kwa yoya ko.

Nzila va mwelo anzo kaka yisukilanga. Kondwa kwa mvutu za mbi.

Mvula tatu wanatwa kuna Roma, wafwa lufwa lwa mpasi.

 

Osinga kala ye  luzolo lwa vutuka kuna nsi a kivwila,

nsi a nsambu yina wa wutukila. Kansi ensukulu ke ndozi ko,

e kyememe vo kya kitinu.

Mbemba kazungana, vundilu kyandi mfuma,

ditekele moneka muna kadilu kyaku.

Kondwa kwa teka zaya, watambudila enzyetelo.

 

Wabakama kwa mabamba ngolo ma Holândio, ye ba yiya

e min’kayilu wa nata kwa papa, wa bangikwa  kwa m’fundisi

mya Espanha, dyasadidila muna ngindu ye wasikalala mu lwaka,

kondwa  kwa teka fila n’samu. Ntumwa ya Nimi a Nkanga

muna tumamena mana kasikidisa.

 

Kemavangama ko, Nzambi wamona  e mpasi zaku,

yandi wazola kubokela  kuna kena. Kana yi lusadisu

lwa papa e mwuki myandi keba lenda kuvuluza ko.

Diasadila kaka muna zitiswa yo zyama muna luzitu.

Wau yin’samunu a lusansu lwaku, yo nzimbwa a nzyetelo

aku kuna Roma 

                          

 Wa tomboka kuzulu ye lusakumunu lwa Paulo V,

landila nene wasalu kyaku. Wakitulwa máma kya matadi

ma ntalu ma ndombe, bonso ngeye,  kya telamesua muna nzo

a sambu ibokelelwanga e nkumbu ya Santa Maria Maior.

mu fwani kya nene wa n’tinu’ aku. Wunu ntumwa a nene a nzitusu,

wabaka e nkumbu ya luzitu, m’pelo a n’zolwa akongo.

@ Fragata de Morais e Editora das Letras