Livro a ser publicado brevemente
A
saga de uma família que tem origem no Porto em 1813 e cujo protagonista ao enfrentar o Poder é deportado para Luanda a fim de cumprir uma pena de
degredo de cinco anos.
Uma vez cumprida, viaja para Benguela onde é apoiado por um rico comerciante numa
missão de contacto com os povos mais ao Sul, territórios em que nenhum homem branco
houvera ainda chegado.
Na
região dos povos Ambó é capturado no Kwamatu, tendo aí falecido e deixado vasta
prole, o que dá aso ao trama do
romance de forte pendor histórico e
cultural.
A
saga termina em 1917 com a morte do derradeiro descendente da família
inicial, agora guerreiro do reino Ovakwamati a lutar ao lado do Rei Ovakwanyama Mandume Ndemufayo.
Excerto:
Ainda estava de cócoras, por trás de uma árvore,
quando desabou sobre o acampamento um alvoroço de vozes, gritos e tiros, num
claro salve-se quem puder. Puxou rapidamente as calças para cima e correu para
trás de um morro de salalé entre duas árvores, tentando observar o que se
passava, agachado. Viu gente vestida de panos curtos, muitas azagaias, punhais,
porrinhos e algumas, poucas, armas. Três dos carregadores jaziam no solo,
mortos certamente, notou que nenhum deles era Kandjimbu e o resto conseguira
fugir. Os burros zurravam assutados, alguns aos pinotes sacudindo a carga que
já fora parcialmente colocada sobre eles, alguma já trafegando de mão em mão
entre gritos de alegria. Manteve-se estático, ninguém se preocupava em saber
dele, pelo menos assim julgava, e sempre seria melhor regressar a Benguela sem
nada, do que deixar ali a vida. No meio de toda aquela azáfama, lobrigou
Hamutenya, já com alguns panos ao ombro e vários colares de missangas ao pescoço
e enroladas nos pulsos. Alguém trouxe o que poderia ser considerado uma
cadeira, mais um banco, e viu um homem sentar-se nele, certamente o chefe, o
Soma. Aos poucos a ordem foi-se restabelecendo e viu Hamutenya ser chamado
junto do homem sentado e receber instruções.
"Sô Tônio, pode vir", gritou várias
vezes, em direcções diferentes.
Esperou por uma resposta, que não veio e repetiu
o chamamento. António Labrego ficou sem saber o que fazer, onde estava não lhe
oferecia garantia alguma, bastava seguirem a pista a partir da sua tenda, as
marcas das botas prontamente seriam reconhecidas e talvez viesse a sofrer
consequências mais gravosas. Mesmo assim, necessitando de tempo para pensar,
não respondeu.
Viu o chefe sorrir e a beber alguma da aguardente
roubada. Isso deu-lhe a determinação de se apresentar, preferia falar com ele
sóbrio de que já embriagado. Notou que tresandava a fezes, não se limpara e sem
se levantar para não se tornar alvo gritou, em umbundu, como sinal de
esperança, desejando que esse povo não fosse odiado por eles.
1) Hamutenya, ndi-si kulo". (Hamutenya, estou aqui)
Ouviu uma gritaria generalizada de contentamento
e observou o chefe a sorrir, sinalando a Hamutenya para o ir buscar. Por fim
levantou-se, tentou demonstrar porte digno mas não altivo, compôs a roupa e sentiu
que a diarreia se evaporara. Deu uns passos à frente para se revelar e quando
notou que fora visto estancou à espera. Hamutenya, trajado como os outros,
vestia um pano amarrado à cinta e que se dobrava sobre si mesmo e sobre este,
amarrada, uma pele de boi preto, com um outro pano mais pequeno a tapar-lhe as
nádegas. Carregava uma longa azagaia, bem como a sua arma e um punhal á cinta.
Aproximou-se a António Labrego, sorriu-lhe e indicou que o seguisse. Assim foi
levado à autoridade sentada, que se manteve impressionada a olhar.
Aguardou, braços pendentes e tentando não revelar
qualquer emoção.
(2) “Ke na sha oshipa... ke na sha oshipa…” (ele não tem pele), saiu
da boca do Ohamba a exclamação atónita.
Recuaram assustados e o cimbanda foi chamado para explicar como é que um
homem, caso fosse mesmo homem, não tinha pele.
“Ano yee omhepo yashituka ta yeende muunyuni
wovanamwenyo?” (ele não tem pele, será um espítitpo a vaguear no mundo dos vivos?) insistiu o Ohamba a olhar para o cimbanda.
Atiraram-lhe um pau para verificar se o atravessava.
Quando satisfeitos que era um ser humano igual, o
chefe agarrou em vário colares de missangas, observou a qualidade, bebeu mais
um gole da aguardente e falou para Hamutenya, que traduziu.
“Ohamba Shikwete Ndesipakwa dizer branco trazer
coisas boas. Branco aqui não chegar, sô Tônio querer quê, Ohamba preguntar?"
António Labrego sorriu e como sabia que bater
palmas era sinal de respeito, assim o fez três vezes antes de falar,
curvando-se ligeiramente.
"Diz ao grande chefe que vim para fazer
comércio, trocar coisas, o que aqui trago por marfim, bois, cera e mel, como
bens sabes, saíste de Benguela comigo. Se for do agrado dele, poderemos continuar
estas trocas, uma mão lava a outra. Nada mais aqui me trás, como bem sabes, repito."
Hamutenya traduziu tudo, esperando António Manuel
Labrego que ele fosse fiel no verter de suas palavras. Ouviu novamente o chefe
a falar para Hamutenya, que se virou para ele.
"Ohamba Shakwete falar sô Tônio tratar bem
gente dos carregador, eu contar, maji branco nunca vir aqui, primeira vez. Chefe
dizer sô Tônio vir com chefe e viver no 1) ehumbu (aldeia, local onde vivem as famílias Ambó). Regressar no Benguela não pode, branco não pode voltar aqui."
"Diz no chefe que aceito e vou ficar a viver
aqui.", achando ser essa a resposta mais prudente por agora.
Quando as suas palavras foram traduzidas,
novamente se ouviram gritos de contentamento por parte de muitos.
Ficou sem saber o que fazer de seguida,
certamente manter-se como estava e aguardar. Veio-lhe então à mente, talvez
como compensação, que o seu Natal iria ser passado sozinho entre gente que
disso nada sabia, se de facto o mantivessem vivo. Pediu que tudo o que tivesse
na sua tenda, seus pertences, pudesse ser levado com ele ao que o chefe anuiu
mandando-lhe executar a tarefa com Hamutenya e indicando um outro que se
encarregaria de a colocar nos burros. Pensou na mula e decidiu de imediato que
a iria oferecer ao chefe. Para ele pouco lhe serviria a partir de agora.
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