E viu-se outro sinal no
céu;
e eis que era um grande
dragão vermelho...
e o dragão parou diante
da mulher
que havia de dar à luz,
para que, dando à luz,
lhe tragasse o filho.
S. JOÃO - APOCALIPSE 12
Há sete
longos anos que o filho lhe remexia as
entranhas. Não havia dúvida, há sete
anos que a criança a apalpava por dentro, que lhe falava em silêncio penoso.
No início da gravidez os médicos observaram-na cuidadosamente, todavia, à medida
que os meses passavam, insinuaram uma gravidez psicológica.
Ao décimo sete mês, uma amiga, insidiosa, propôs-lhe a
possibilidade de uma barriga de água.
“Não sabes o que é, eu explico-te?...”, ofereceu-se.
As íntimas, propuseram os remédios da terra, a visita aos
kimbandas, aos adivinhos. Não haveria nada a perder, que não tentasse esconder
o que é da terra. Mulher grávida há sete
anos só pode ser curada com a tradição, com o debicar engasgado do galo.
Angustiada, cruzou as longas pernas, vestia o robe de
chambre azul cor das águas e reclinou-se no cadeirão de couro da vasta sala de
visitas de sua casa.
Acendeu, silenciosa, um cigarro. Não queria ser apanhada em
kimbandas. Isso não. Seria o perder do
pudor, sabia que os rótulos arquitectam-se nos vastos silêncios sociais.
Atirou, com displicência, o fósforo para o cinzeiro e
serviu, da pequena mesa ao lado uma bebida, levando-a à boca em longos e
melancólicos sorvos.
Olhou para o quadro pendurado na parede oposta. Paisagem
típica africana, o capim em movimento, fustigado pela brisa da tarde. Suspirou
nostálgica, sentindo a paisagem embrenhar-se nos poros das paredes da sala, e o
copo da bebida estremeceu na mão, à carícia do vento melódico que soprava do
norte. O fumo nervoso do cigarro esvaiu-se no ar, rumo ás nuvens onde pairavam
as águias das palmeiras, enquanto que, contemplando o momento de ilusão, acabou
por tombar adormecida anestesiada pela angústia do desassossego, ao badalar dos
pios angustiados do mocho ora desperto na árvore soberba.
O marido entrou na sala, olhou o rosto tranquilo e ainda
fumegado do cigarro meio perdido de cinza, e retirou-o da mão palpitante.
As águias das palmeiras gritaram, estrídulas.
Como todos, igualmente pensara que a estória da gravidez
fosse passageira, e por essa razão acarinhara os anseios da esposa, nunca a
desfalcando de amor e compreensão.
“Olha a criança mexeu, o nosso filho mexeu, não viste?”,
dizia-lhe, mão no ventre ofegante.
E com este acanhamento vestido de verdades aparentes, foi
contando aos parentes e amigos as vicissitudes de futuro pai.
Por volta da gravidez psicológica começou a não conseguir
pôr cobro à chacota mal disfarçada, aos ditos apenas sussurrados à sua
passagem.
O desânimo aproximou-o mais da esposa e passaram horas de
deleite encontrando nomes para a criança, para o filho.
“Sim só poderá ser um menino”.
Inventaram creches e escolas.
Mas quando qualquer dúvida renascia, quando o terror se lhe
assenhorava da alma, fugia tinhoso para
a amante, pronta e aberta, que o
compensava pela gravidez inexplicável, mesmo se, no expirar do tempo,
partia mais triste do que viera e mais vazio do que chegara, revertido criança
na estórias meio contadas dos adultos, de ser ele o filho do dragão, o fruto do
pecado e da vergonha sempre eterna que lambe as labaredas do inferno.
Seu pai, era tio de sua mãe.
E na descendência dos mal amados, os antepassados
obrigá-lo-iam a carregar até aos fins do caminho, a sarna que há sete anos
passara para o ventre frutificado da esposa.
Só poderia ser isso.
Agarrou o sufoco e embrenhou o medo nos seios flácidos da
amante.
Regressou a casa encontrando a mulher ainda no mesmo lugar,
adormecida. Pensou em acordá-la, não o fez, sentou-se no cadeirão e teve a leve sensação de sentir a carícia do
vento no rosto.
No véu da memória que não era a sua, o cadeirão de couro da sala era o tronco seco
já meio apodrecido no capim onde sua mãe, ainda mulher-meia, tentava agarrar a
brisa suave com as mãos, enganando o desespero que a cingia porque, em breve,
seria a época das queimadas, a derruba do nicho incestuoso do amor, e assim não
poder encontrar-se com o tio para as rezas suplicantes da carne.
No tempo do cacimbo, a terra reveste-se de castanho seco, a
mata ressequida é chama lambedora do
fogo-posto, impudico em labaredas devoradoras . De um momento para o outro, o
que era abrigo e escondia momentos
prazerosos, nada mais seria do que um descampado com nascente capim verde, pasto das seixas, dos veados, até mesmo das
pacaças mais afoitas.
Na espera do tio, deitou-se não longe do tronco e
pressentiu, que alguém se sentara. Soergueu-se com ansiedade mas não, não fora
o tio que chegara, aliás tê-lo-ia visto.
Recordou o momento acre-doce de devaneio, da entrega
rendida ao latejo do desejar. Tinha quinze anos e o tio vinte e oito. Verdadeiramente
nunca conseguira explicar por palavras ou pensamentos conscientes como tudo
começara, o que a dominara, possuíra, feita animal envolta nos perfumes do cio
manifestado.
Uma tarde de calor, o capim alto observando-a,
aconchegando-a, excitando-a ao âmago, foi a carícia que fez jorrar a água das
fontes internas do desejo. Abrira a blusa e expusera os seios negros e luzidios
ao beijar da brisa, ao restolhar das
folhas próximas das árvores.
Mulher feita, mulher desejando, arfando sem motivo
aparente. Mulher fêmea em aromas vaporosos, ainda que não sabendo.
E quando o tio apareceu feito vadio, como que não
conhecendo das tardes de calor da sobrinha, ela fez que não sabia do desejo e
do ardor, pretendendo que nunca desejara o que então estava pronto e sacrificial.
E talvez até tivesse sido assim.
Na escuridão da eterna culpa e no despir da razão
vacilante, em jeito de despedida, sem saberem ou desejarem, na morte da alma
entregaram-se arfantes um ao outro.
Deram-se a carne perante os olhares nunca adormecidos dos
que eternamente vigiam, dos que vivem nos fundos dos rios e das lagoas. E dos
que percorrem os caminhos tortuosos dos matos nas noites de luar cheio.
Quando se sentiram saciados, lambuzados do mel e da água
viscosa que brevemente os unira na perdição, ficou como marca do diálogo que os
corpos mantiveram, a brusca revoada das perdizes assustadas com o lancinante
grito de dor do conhecimento que ganhara.
O sangue virginal no capim não foi chorado nem cantado
pelas mulheres, como deveria, em afirmações honrosas. O último pingo da seiva amorosa que escorrera
envergonhado das carnes já marcadas pela maldição, teimosamente agarrou-se à
pequena espiga dobrada, até que a hiena
sequiosa o lambeu em gargalhada esdrúxula do pôr do sol.
Nunca mais se falaram, quase nunca mais se olharam, mas nos
momentos inseparáveis em que ambos sonhavam com as águas do rio transbordando
raivoso pelas margens, nesses momentos, como que por acção fatídica,
encontravam-se para o amor, para a troca de fluidos, sempre sob a vigilância
acesa dos olhares albinos dos que nunca adormecem, dos que vivem com os
caranguejos doces.
Aos dezassete anos engravidou. Pérola lançada no chiqueiro.
O tio, em fuga para terras longínquas e inacessíveis,
lugares inenarráveis, ninguém mais dele soube.
“Acusa o padre da missão, já tem dois filhos.”,
recomendou-lhe ainda.
Aos dezassete anos engravidou minutos quando foi derrubada
a árvore ainda verdejante dos sonhos.
“Acusa o padre da missão, não sejas parva.”
Engravidou horas, dias, semanas, até o aterrador compasso
do tempo não permitir mais aquele esconder do inevitavelmente inescondível.
Engravidou desesperos e raivas ancestrais obscuras que
desconhecia.
Das mãos paternas, medrou chicotes cavalomarinhados em
sulcos ardentes fendidos no corpo tenro, na ira sempre justa e profunda da
família secular, e na dança das kiandas injuriadas
Foi fechada, desterrada para o convento das madres
carmelitas até ao fim do pernoitar do pecado, para o nascer alvoroso do dragão
encarnado, já que a noite não é para ser vista com os olhos do dia.
No parto-morte clamou por vingança no nome daquele que
fustigara sua inocência, que saciara seu desejo de virgem-fêmea não conhecedora
das regras com que a natureza joga o jogo dos calores e dos suores.
Pois que a natureza
se vingasse.
Gemeu as entranhas até o filho nascer e, ao sustentá-lo
brevemente nos braços para lhe inculcar todo o fundo tenebroso de sua alma,
cuspiu com o olhar embaciado pela dor a maldição perpétua e autófaga. Só então
sentiu a força das lagoas profundas a puxar, feliz e liberta.
Na sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono,
sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável,
nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao
ventre e puxou-o a si, ardendo não da febre mas do desejo. Penetrou com a
língua sedosa o bacio da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos
segredos da alma.
A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou
ignorar.
“Que situação ridícula, não posso”.
Todavia os lábios femininos insuflaram a não mais o
estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado, sentiu a criança
agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o ventre materno no
momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso do plasma.
Em seguida veio a paz e o ruído meigo das cataratas
deslizando sobre as rochas em musgo.
Foi, na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro
onde repousava o corpo inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o
encontraram sete dias mais tarde.
Do carcomido ventre da esposa saiu assustado um sardão
vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore, restolhando as
folhas secas das tristezas.
O corpo da mulher exalava todo o perfume e aromas mornos
das festas das divindades aquáticas.
Ele, coitado, anunciava feliz aos rostos contritos de
ansiedade, que o contemplavam em silêncio, que o filho finalmente nascera.
Agora que o desculpassem, teria que ir buscar mel ás
colmeias e leite ás tetas das cabras para o alimentar.